São Paulo, sábado, 30 de maio de 1998

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"Eu sou a romã!", gritou Helena há quase 40 anos

ALVARO MACHADO
especial para a Folha

"Eu sou a romã!", ela dizia no palco baiano, 1960, em "A História de Sara e Tobias", de Paul Claudel. A frase enfeitiçou Caetano Veloso e Maria Bethânia, que passaram tempos imitando a dicção da atriz. Caetano registrou, no livro "Verdade Tropical", a sua reação e a de Bethânia frente a Helena Ignez: "Nós a idolatrávamos".
Em certo sentido, a atriz se tornaria mesmo, pouco depois, a "romã", a caixa de grãos que ajudou a formar o cinema brasileiro dos anos 60. Primeiro o cinema novo, que ela pariu junto a Glauber Rocha, obtendo financiamento para seu primeiro curta, e depois o cinema marginal, quando funcionou como musa absoluta e estrela para os diretores Júlio Bressane e Rogério Sganzerla.
Após 19 filmes rodados entre 1961 e 1973, e papéis menores na década de 90, seu rosto voltaria a iluminar as telas em novas produções de Sganzerla ("Sob o Signo do Caos"), Bressane ("São Jerônimo") e Roberto Pires ("Nasce o Sol no 2 de Julho"). Mas é retomando sua paixão primeira, pelo palco -que inclui formação acadêmica de atriz-, que Helena Ignez promete ser, mais uma vez, a tal "romã".
Aquecendo-se no teatro paulista e carioca em papéis coadjuvantes desde o início dos anos 90, ela reaparece agora, em "Cabaret Rimbaud", como uma sacerdotisa (a "guardiã") que franqueia os portais do inferno para o mergulho do poeta e traficante de armas Arthur Rimbaud. Para que as engrenagens deslizem macias, Helena azeita a maquinaria teatral com o pensamento de outro "maldito", o ator e teatrólogo Antonin Artaud (1896-1948).
A montagem é a jogada mais ambiciosa de sua carreira teatral. Na peça, ela se autodirige e distribui as cartas, místicas e emblemáticas como as do tarô. Na casa dos 50 anos, os traços finos do rosto ainda magnetizam, como no dia em que o cinema brasileiro começou a renascer. Foi assim: eleita "glamour girl" do ano de 1958 em Salvador, ela não esperou 24 horas para vestir seu prêmio -brincos e colar de jade-, sentar-se no escritório do milionário baiano promotor do concurso, Pânphilo de Carvalho, e conseguir dinheiro para o namorado Glauber Rocha rodar seu primeiro curta-metragem, "O Pátio".
A "branquela" Helena conheceria o "outro lado da sociedade" pelas mãos do "mulato Glauber", como se referiam ao cineasta amigos da família dela, e esse "outro lado" se tornaria, a partir daí, sua família. O casamento gerou Paloma Rocha. Porém, contra a vontade do companheiro -"Se você fizer sucesso, nos separamos"-, Helena intensificaria a carreira de atriz.
Ante o inevitável, Glauber lhe pediria para trabalhar em "A Grande Feira" (61), de Roberto Pires, filme no qual foi produtor executivo.
Já separada de Rocha, foi morar no Rio, e participou de "O Assalto ao Trem Pagador" (62), no único papel feminino do filme de Roberto Faria. Mudou de registro para colaborar com Joaquim Pedro de Andrade no delicado "O Padre e a Moça" (65). A interpretação dividiu o júri do Festival de Berlim, que criou para ela um prêmio de "revelação de atriz". "Foi um crítico carioca no júri que se opôs à premiação na categoria principal", revela.
Depois veio o namoro com Julio Bressane, e o primeiro filme do diretor, "Cara a Cara" (67), que inaugurou sua marca de ícone andrógino, inatingível e fatal.
Numa época inigualável para o cinema brasileiro -quando as marquises exibiam os nomes de Leila Diniz, Dina Sfat, Darlene Glória, Anecy Rocha, Adriana Prieto...- Helena usou atributos muito particulares para amparar sua imagem. Embora suas personagens oscilassem entre libertárias e libertinas, ela lembra: "Para guardar energia, eu quase não trepava: o Jece Valadão dizia que eu era de fritar bolinho".
Apaixonou-se por Rogério Sganzerla durante as filmagens de "O Bandido da Luz Vermelha" (68). Com o marido Sganzerla e o amigo Bressane manteve a produtora cinematográfica Belair, cuja estética teve ecos perceptíveis até mesmo no ciclo da pornochanchada. O estilo debochado da atriz, e as muitas frases que afrontavam de forma subliminar a ditadura -"O negócio é ser boçal"- influenciavam os cômicos da TV.
A fase mística, hare krishna, durou seis anos inteiros. "Foi, talvez, para escapar do cansaço da vida de atriz e da família", diz. Nos templos da seita nos EUA, aprendeu a ler mãos com um monge, prática que exercita até hoje, assim como a ioga e o tai-chi. "Sou ecológica, amo os bens da natureza, com todas as suas ervas", diz a atriz, forçando o duplo sentido da frase, à maneira de seus diálogos de 1969.
Um astrólogo na Índia, nos anos 80, vaticinou que a carreira profissional da geminiana seria produtiva até idade avançada. No vocabulário da "Mulher de Todos" (título do filme de Sganzerla, 69), "desbunde" virou "liberdade", e o arrebatamento convive agora com disciplina e reflexão. De qualquer maneira, Helena Ignez está disposta a cumprir o seu destino. Como sempre, ela não hesitará em misturar os registros da vida e da ficção: em 99, por exemplo, deverá ser a Madame Blavatsky teatralizada por Plínio Marcos, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa.



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