São Paulo, sábado, 30 de maio de 1998

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'Parafuso' é clássico do horror psicológico

especial para a Folha

A tradição por vezes nos prega uma peça. Por que outro motivo seríamos obrigados a engolir um título tão esquisito como "A Volta do Parafuso", na verdade uma antiga tradução literal de "The Turn of the Screw"?
Em inglês, a expressão tem sentido. Significa um grau de pressão ou crueldade empregadas numa situação já difícil de suportar. Remete a uma velha prática de tortura, que consiste em prender os polegares da pessoa a um instrumento que, a cada volta do parafuso, aumenta a dor do supliciado.
A tortura, em Henry James, é quase sempre psicológica e aí reside a beleza dessa novela, uma das mais bem acabadas, intrigantes e polêmicas narrativas de horror de todos os tempos.
O livro surgiu quase de brincadeira. Conta James que, em uma roda de amigos, lamentou a sorte das histórias de fantasmas, sujeitas, em tempos modernos, a um tipo de relato "físico". Como nesses casos tudo era descrito, pouco restava à imaginação dos leitores.
James quis fazer o oposto, confiando na imaginação de quem lê para criar o horror. A vilania, o sinistro, o mal, o diabólico são apenas sugeridos. O resultado é que o leitor imagina o pior, o mais medonho -o indizível. Se essa estratégia amplia o sentido do terror, também propicia uma das mais famosas polêmicas das letras inglesas, equivalente em vários sentidos ao processo sofrido pela Capitu, de Machado de Assis.
A narradora do caso fantasmagórico é uma jovem governanta incumbida de cuidar de duas crianças órfãs em uma casa de campo inglesa. Segundo ela, os pequenos estariam sendo possuídos pelos fantasmas de dois ex-criados da residência. A questão é saber se estamos diante de um caso de possessão, ou se tudo não passa de alucinação da governanta.
Edmund Wilson, o mais famoso representante da segunda vertente, escreveu que a moça representa um exemplo severo de repressão sexual. Oprimida pelo puritanismo, imaginou os fantasmas e, pior, teria envolvido as ingênuas crianças em seu canibalismo emocional. Torturada, teria passado a torturadora, ainda que bem-intencionada. Mais tarde, o crítico matizou sua tese e disse que, na verdade, fora James quem, ao duvidar de sua narradora, imprimira inconscientemente indícios que nos levariam a desconfiar dela.
No prefácio à obra, Jorge Luis Borges afirma que as duas hipóteses são possíveis. Mas nada inconscientes. Num jogo de revelação e ocultamento, James introduziu ambas as formas de interpretação. Acha-se nessa multiplicidade de sentidos a riqueza do escritor anglo-americano.
Ao leitor, portanto, cabe não só forjar o mal sugerido, como também a própria história que está lendo. Seja qual for a interpretação escolhida, porém, esta não o livrará de um frio na espinha, de um medo vago, de um horror insidioso, de tênues fumos infernais....
Em tempo: o prefácio de Borges é parte integrante desta edição, a qual se insere na série de literatura fantástica "Biblioteca de Babel", da Ediouro. Desta vez, a editora acertou na forma (com capa discreta de Hélio de Almeida) e no conteúdo. (MP)

Livro: A Volta do Parafuso Autor: Henry James Tradutora: Olivia Krähenbühl Lançamento: Ediouro
Quanto: R$ (188 págs.)



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