São Paulo, sábado, 30 de maio de 1998

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Obra completa sai no país

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

O Brasil não pode mais reclamar de carência de material sobre o australiano Nick Cave, um dos mais idiossincráticos e pungentes artistas excretados da epiderme yuppie do rock dos anos 80.
A Paradoxx faz serviço completo, editando um "o melhor de" e de quebra colocando à disposição toda a discografia -11 CDs, descontada a compilação- de Cave e sua banda, The Bad Seeds.
"The Best of Nick Cave" é um soco no estômago porque Cave e os Seeds, mesmo quando não estão em plena forma, são sempre um soco no estômago, léguas distantes do yuppismo e do neo-romantismo de oito entre dez bandas firmadas nos 80.
"The Best of" é, então, o óbvio. Omite os covers de "Kicking against the Pricks" (86), mas passeia bem por "The Mercy Seat" (88), "Straight to You" (92), "Do You Love Me?" (94) ou os belos duetos de 96, "Henry Lee" (com PJ Harvey) e "Where the Wild Roses Grow" (com a xuxinha Kylie Minogue).
Fora isso, é CD de bandeja para quem quer saber quem é Cave, mas não quer tanto assim. Para os mais maníacos, a obra reeditada -apesar do descuido geral na reprodução de capas e encartes, todos chapados, alguns sem letras e tal- é prejuízo certo à poupança e lucro imediato à inteligência.
A epopéia principia por "From Her to Eternity" (84), em que de cara Nick já afia as garras, abrindo com "Avalanche" (68), do canadense Leonard Cohen. Verdade que a versão é toda desconstruída, horrenda mesmo, mas há aí uma carta de intenções.
Assim seria o Nick Cave dos primeiros álbuns -revoltado, gritão, nada melódico. Era, aí e em "From Her to Eternity" (85) -um disco "bluesy', meio mal gravado, assim como o primeiro-, um cara nada pop, outsider de primeira. Não comece por aí, se estiver a fim de lá-lá-lá.
"Kicking against the Pricks" (86), o terceiro LP, veio trazer bagunça à impopularidade de Cave. Vestido de crooner, enfileira ali covers contundentes que vão do mais cru submundo ("All Tomorrow's Parties", do Velvet Underground) ao pop de mercearia (o country "By the Time I Get to Phoenix", "Something's Gotten Hold of My Heart" -sucesso do repertório de um tal Gene Pitney que até Marc Almond já cantou).
"Your Funeral... ...My Trial", do mesmo ano, desbunda de vez em Cave a morbidez -"seu funeral, meu julgamento", dá para perceber?-, talvez sua mais expressiva característica artística.
Segue-se a primeira obra-prima em larga escala, "Tender Prey" (88), de temas alucinados como "The Mercy Seat", "Up Jump the Devil", "Deanna", "City of Refuge", "Sunday's Slave"...
"The Good Son" (90), resultado do período em que Cave morou no Brasil, não segura o fôlego. Mais religiosamente perturbado que nunca, ele canta em português coisas ininteligíveis como "foi na cruz, foi na cruz que um dia/ meus pecados castigados em Jesus".
Um Nick Cave, digamos, amadurecido dará vazão agora a uma série de álbuns irrepreensíveis -interrompida apenas pelo ao vivo "Live Seeds" (93), que, bem, deixa pra lá. Até hoje, não espreita sombra de cansaço criativo.
O primeiro é "Henry's Dream" (92), épico em temas dilacerados como "Papa Won't Leave You, Henry", "I Had a Dream, Joe", "Jack the Ripper" (ele, o estripador), "Straight to You".
Essa última indicia um Cave forjador de baladas profundas, dramáticas, doloridas, que prosseguirá em "Let Love In" (94) -"Do You Love Me?" (em duas versões), "Nobody's Baby Now", "I Let Love In" e mesmo o folguedo "Red Right Head" petrificam.
Está aberta a cortina para surgir o assassino Nick Cave, em "Murder Ballads" (96), um compêndio de histórias de sangue e violência cantado, em geral, com solenidade -quando não com calma. Inscrevem-se aí dois clássicos imediatos, "Henry Lee" e "Where the Wild Roses Grow".
"The Boatman's Call" (97), o álbum mais recente da banda, é continuidade (porque mantém a linha de baladas amargas) e oposição (porque adota o tom menos revoltado de toda sua história) a seu antecessor.
Aí está a história. Resta à Paradoxx lembrar-se agora dos magníficos CDs em que o guitarrista dos Bad Seeds, Mick Harvey, interpreta, em inglês, os standards do francês Serge Gainsbourg. A Nick Cave já foi feita a justiça.



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