São Paulo, sábado, 30 de maio de 1998

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Choro em filme sobre nada

NICK CAVE
para o "Independent on Sunday"

Um amigo me convidou para assistir a uma pré-estréia de um filme russo. Perguntei do que se tratava e ele disse: "Bem, nada acontece na verdade e então alguém morre. Venha. Você vai amar".
Cheguei quando terminavam os créditos de abertura. Dez minutos depois, comecei a chorar silenciosamente e fiquei assim pelos 73 minutos do filme. Já havia chorado em filmes, mas não me lembro de ter chorado tão forte em silêncio, sem pausa, todo o tempo.
Quando o filme terminou e as luzes se acenderam, uma mulher de olhos vermelhos sentada duas fileiras atrás de mim jogou um Kleenex na minha direção e perguntou se eu escreveria algo sobre o filme para um jornal.
O filme se chama "Mother and Son" e é dirigido por Aleksandr Sokurov. Explora o último dia na vida de uma mãe à beira da morte. A mãe quer que seu filho leve-a para um passeio, que envolve carregá-la por paisagens de sonho, retornar à casa isolada, alimentá-la e colocá-la na cama.
Aí o filho sai para andar sozinho e volta para descobrir que ela está morta. O que testemunhamos nesse tempo é algo de tanta beleza e tristeza que chorar, para mim, foi a única resposta adequada.
"Mother and Son" é um filme sobre morte e amor e graça. O amor entre mãe e filho transcende o amor comum por ser purificado pela iminência da morte.
O tempo parece ter diminuído respeitosamente numa velocidade na qual um cuidadoso gesto de amor pode passar por ele: nenhuma ação é apressada, pois isso apenas iria adiantar a morte.
Eles parecem estranhos ao ambiente e despreocupados com o mundo ao redor deles. Tudo que existe são gestos de conforto, carinho, ternura. O filho escova os cabelos da mãe, alimenta-a com uma mamadeira. A mãe responde com carícias e cuidados. É um relacionamento, de certa forma, que não deveria ser visto. É sagrado, religioso, descomplicado.
É uma visão de humanidade que se tornou transcendente de verdade; e ainda assim Sokurov deixa comentários sobre a trágica natureza da morte. A morte está suspensa pesadamente sobre tudo, entristecendo cada gesto.
Até a paisagem parece estar velando a partida próxima da mãe. Aqui vemos a paixão, ocasionalmente refletindo a história da Cristo: a paixão não da mãe à morte, mas do filho, não do que irá morrer, mas do que irá ficar.
Os diálogos também parecem estranhamente ineficazes, como se o amor e a compreensão dos protagonistas houvessem tornado a linguagem desnecessária.
Há psicologia nas palavras, há complicação e dor. Não há melhor evidência disso que a conversa final, na qual discutem as razões para morrer e para viver. O diálogo é fútil e cruel. E serve apenas para reabrir os sentimentos de pena.
Diz a mãe: "É tão triste. De qualquer jeito, você ainda terá de sofrer por tudo que passei". "Dá uma cochilada, mãe", diz o filho. "Durma. Eu voltarei logo." Sai e caminha na espantosa paisagem. Nessas cenas, longas, quase sem movimento, o filme alcança a altura da mais estonteante beleza.
As paisagens de Sokurov não têm qualquer noção de realidade. Suas cenas são transformadas em telas cinematográficas, mais próximas da pintura que do cinema. Essas vistas nascidas em sonho lembram o trabalho daqueles pintores românticos alemães do início do século 19: em particular o de Caspar David Friedrich.
A vastidão e o mistério dessa natureza tão elevada criam uma espiritualidade que não depende de qualquer fórmula do cristianismo tradicional. E o cuidado que Sukurov dá a essas cenas meticulosamente desenhadas reflete o cuidado que um personagem dispensa ao outro -a devoção ao detalhe, o carinho sem pressa, o amor.
A toda essa beleza é dada uma velocidade, um espaço de tempo ditado pela invasão da morte. Cada pedaço de ação, cada gesto -lento, triste, importante, sagrado- dá ao espectador o tempo de cair por seu encanto.
Assistindo ao filme, somos forçados a confrontar a inevitabilidade de nossa própria mortalidade e a mortalidade dos outros. As emoções são despertadas dentro de nós de uma maneira que o cinema não conseguia há muito tempo.
Minha resposta inicial ao filme foi derramar lágrimas pela tristeza das coisas. E sua pulsação única está dentro de mim desde então.


Tradução Denise Bobadilha



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