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São Paulo, sábado, 30 de agosto de 2003

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LITERATURA

"MALDITOS PAULISTAS"

Romance de Marcos Rey, relançado pela Companhia das Letras, é uma homenagem à cidade

Por dentro dos ricos personagens de São Paulo

MARCELO RUBENS PAIVA
ARTICULISTA DA FOLHA

João Rubinado, pseudônimo Adoniran Barbosa, está para o samba paulistano o que Edmundo Donato, pseudônimo Marcos Rey, está para a sua literatura: poucos usaram e abusaram de São Paulo como eles.
"Malditos Paulistas", relançado pela Companhia das Letras, é uma homenagem a esta cidade e seus habitantes -apesar de ser narrado por um carioca campeão de frescobol e de se passar quase todo numa mansão do Morumbi. Raul já foi salva-vidas, cabo eleitoral e motorista. Sonha com um belo emprego público, que atrelasse seu pequeno destino ao grandioso futuro na nação. "Mas à falta dum curso ginasial completo, cartuchos e pistolões, meu nome nunca foi impresso no "Diário Oficial'", diz.
"Em São Paulo, enquanto aprendia o novo idioma, trabalhei numa casa de jogos eletrônicos", conta, até se candidatar à vaga de motorista de um bacana, um ex-fascista italiano, Paleardi, e surpreendentemente ganhá-la. Descobre que o anterior fora executado. Convive com uma dúzia de outros empregados, e ganha Lucélia, a copeira digna de um "outdoor do Biotônico Fontoura".
"Lucélia não tinha muita beleza e só lera o almanaque "A Saúde da Mulher", mas seu físico compensava. Ao contrário das falsas magras, era uma falsa gorda, protótipo raro ainda não focalizado pelas revistas "for man"."
Ele ganha a confiança dos cachorros da casa, flerta com a madame Paleardi e aos poucos descobre os verdadeiros negócios da respeitável família. O autor entra com facilidade nessas coletâneas de citações. "A origem e educação das pessoas estão impressas na voz, por isso o afônico nunca é digno de total confiança."
Rey vivia para seus personagens e leitores e não para modinhas literárias. Seu estilo é contemporâneo. A narrativa caminha por entre a de um policial psicológico à crônica, cruzando com a dramaturgia. Cada personagem tem um perfil exato e econômico. Diálogos, uma exigência. As piadas, uma constância.
Seu livro é para ser devorado até a última linha. Nenhum proselitismo. Muito proseado. Há dezenas de referências da cidade, como um forró da Vila Sônia. Todos têm aquele humor galhofado de imigrantes italianos, marca da cidade. Todos querem subir na vida trabalhando honestamente; na medida do possível. Uma numerosa classe desbastada convive com poucos cheios da grana.
A casa-grande e a senzala são espelhadas numa mansão e sua ala de empregados.
Sua literatura adulta está sendo relançada. "Memórias de um Gigolô" e "Ópera de Sabão" já foram. E uma constatação deve ser feita: ele é muito melhor do que dita parte da crítica. Ele é genial.
Sofreu preconceito devido à sua vasta e bem-sucedida obra. Por quê? Porque era vasta e bem-sucedida. O autor se profissionalizou num ofício do qual se espera a incompreensão e o abandono.
Ele escreveu para ser adotado em escolas. Lançou mais de 25 livros infanto-juvenis. "O Mistério do Cinco Estrelas" vendeu mais de 2 milhões de exemplares.
Foi durante anos um ídolo entre ginasianos. Trabalhou em rádio, publicidade, roteiros para pornochanchadas, televisão, como "Sítio do Picapau Amarelo", e até para Mazzaropi.
Durante oito anos, manteve uma coluna semanal na "Veja São Paulo". Filho de imigrantes italianos, Rey nasceu no Brás. Partiu para a literatura depois de seu irmão, o escritor também bem-sucedido Mário Donato.
Seu livro de estréia, "Um Gato no Triângulo", de 1953, levou pau da crítica e vendeu pouco. Foi a partir do segundo, "Café na Cama", que vendeu 30 mil cópias, que ele se popularizou. Ao todo, 31 livros, que venderam quase 6 milhões de exemplares.
Morto em 1999, aos 74 anos, teve suas cinzas espalhadas pela cidade por um helicóptero. Rey é "O" autor de São Paulo.
Seus narradores são os tipos que ficam encostados no balcão do Café Floresta, no Copan [como ele costumava ficar], jogam conversa fora, relembram a boa São Paulo e, depois, dão uma passadinha pela boate Love Story para conferir. Conhece o tipo?


Malditos Paulistas
    Autor: Marcos Rey Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 35 (280 págs.)



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