São Paulo, quinta-feira, 30 de setembro de 2004

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CRÍTICA

Valores e estética globais são fatores essenciais

CLAUDIO SZYNKIER
FREE-LANCE PARA A FOLHA

A embalagem de "A Dona da História" traz a idéia do cinema como refúgio idílico da classe média, espelho para suas vivências e sonhos. Ou seja, essa aspiração metalingüística, bastante cara à mitologia audiovisual da Globo -a casa de Daniel Filho-, de "minha vida é um filme".
Parte-se de uma construção orientada pelo conflito: há um senso de imagem nostálgica, suave, em choque com a modernidade envidraçada das paisagens e a decadência do corpo.
Surgem duas histórias paralelas, sobre as mesmas pessoas e lugares. Carolina se lasca na fria aparelhagem de academia. Em um jogo rápido de planos de vivacidade retrô e colorida, sorri, com o uniforme de balé, 32 anos antes. E a Barra? Hoje, jardim de prédios "futuristas", 32 anos atrás, uma selva a ser desbravada, como a vida dos personagens, ainda na flor.
Nos anos 60, Carolina e Luiz Cláudio se apaixonam em manifestação. Vão se casar. Hoje, ela, entojada, pouco agüenta a cara dele. Quer se separar, tudo azedou.
Se esquecermos a desconexão entre os Luiz Cláudios de hoje e de ontem, "A Dona da História" é um shopping center filmado de primeira linha, com textura de loja fofa e aromatizada em cada gesto de câmera. O passadismo, quando encarado, em tom de revista antiga, é melodioso.
O roteiro, equipado com tensões cômicas burlescas, vai cativar. Sem falar do enredo, que passa pela brincadeira do "se eu fizer diferente aqui, o que vou colher em um novo futuro?".
Os enquadramentos sorriem sob a regência de uma artilharia sonora dourada. E o filme baila, entre os dispositivos onírico e naturalista. Neste, que primor. A guerra estudantil nas ruas, com policiais -ferindo gente com esguichos- e cavalos, impõe selo de recriação poética e respeitosa da história brasileira.
Ou seja, temos, em cada camada, um ideal institucional claro, de vida e produção. Todas as instâncias estéticas estão -meio que politicamente- harmonizadas, as engrenagens operam em sadia cadência industrial, o barulho é de máquina nova. Tal lógica de assepsia e excelência, é claro, não abandonará o coração do filme.
Embora se construa, a princípio, no conflito, "A Dona da História", pregará a erradicação das contradições: que vazio é o destino se pensarmos em remontá-lo, é dado o sinal. Indicará a diluição de qualquer estranheza que conspire para a demolição ou o envenenamento de um projeto de "segurança", familiar e estética.
Como sugere o esforço metalingüístico, a vida dessa classe média, na redoma do filme, imita mesmo um certo imaginário de ficção.
Mas de televisão -Globo, no caso-, em seus mecanismos plásticos e sociológicos mais profundos. E pensemos no último Charlie Kaufman, que também viaja pela memória e pelo tempo.
O recomeço, em "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças", é um pacto pela imperfeição, pela nebulosidade do que vem adiante na vida. Sobretudo, um pacto pela aventura "errada", meio cinematográfica, do viver a dois. Uma sociedade acidental, em nome da chance do acidente.
Recomeçar uma história afetiva, em "A Dona da História", é a conciliação, o remendo final. Um grito de negação, estética inclusive, da vida como algo áspero ou indomável. Essas coisas, entendemos, seriam opostas à beleza, e a uma cartilha, a da Rede Globo.


A Dona da História
 
Produção: Brasil, 2004
Direção: Daniel Filho
Com: Marieta Severo, Antonio Fagundes, Débora Falabella e Rodrigo Santoro
Quando: a partir de amanhã nos cines Anália Franco, Center Norte, Frei Caneca Unibanco Arteplex, Pátio Higienópolis e circuito



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