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CRÍTICA
Valores e estética globais são fatores essenciais
CLAUDIO SZYNKIER
FREE-LANCE PARA A FOLHA
A embalagem de "A Dona da História" traz a idéia
do cinema como refúgio idílico
da classe média, espelho para
suas vivências e sonhos. Ou seja, essa aspiração metalingüística, bastante cara à mitologia
audiovisual da Globo -a casa
de Daniel Filho-, de "minha
vida é um filme".
Parte-se de uma construção
orientada pelo conflito: há um
senso de imagem nostálgica,
suave, em choque com a modernidade envidraçada das
paisagens e a decadência do
corpo.
Surgem duas histórias paralelas, sobre as mesmas pessoas
e lugares. Carolina se lasca na
fria aparelhagem de academia.
Em um jogo rápido de planos
de vivacidade retrô e colorida,
sorri, com o uniforme de balé,
32 anos antes. E a Barra? Hoje,
jardim de prédios "futuristas",
32 anos atrás, uma selva a ser
desbravada, como a vida dos
personagens, ainda na flor.
Nos anos 60, Carolina e Luiz
Cláudio se apaixonam em manifestação. Vão se casar. Hoje,
ela, entojada, pouco agüenta a
cara dele. Quer se separar, tudo
azedou.
Se esquecermos a desconexão entre os Luiz Cláudios de
hoje e de ontem, "A Dona da
História" é um shopping center
filmado de primeira linha, com
textura de loja fofa e aromatizada em cada gesto de câmera. O
passadismo, quando encarado,
em tom de revista antiga, é melodioso.
O roteiro, equipado com tensões cômicas burlescas, vai cativar. Sem falar do enredo, que
passa pela brincadeira do "se
eu fizer diferente aqui, o que
vou colher em um novo futuro?".
Os enquadramentos sorriem
sob a regência de uma artilharia sonora dourada. E o filme
baila, entre os dispositivos onírico e naturalista. Neste, que
primor. A guerra estudantil nas
ruas, com policiais -ferindo
gente com esguichos- e cavalos, impõe selo de recriação
poética e respeitosa da história
brasileira.
Ou seja, temos, em cada camada, um ideal institucional
claro, de vida e produção. Todas as instâncias estéticas estão
-meio que politicamente-
harmonizadas, as engrenagens
operam em sadia cadência industrial, o barulho é de máquina nova. Tal lógica de assepsia e
excelência, é claro, não abandonará o coração do filme.
Embora se construa, a princípio, no conflito, "A Dona da
História", pregará a erradicação das contradições: que vazio
é o destino se pensarmos em
remontá-lo, é dado o sinal. Indicará a diluição de qualquer
estranheza que conspire para a
demolição ou o envenenamento de um projeto de "segurança", familiar e estética.
Como sugere o esforço metalingüístico, a vida dessa classe
média, na redoma do filme,
imita mesmo um certo imaginário de ficção.
Mas de televisão -Globo, no
caso-, em seus mecanismos
plásticos e sociológicos mais
profundos. E pensemos no último Charlie Kaufman, que
também viaja pela memória e
pelo tempo.
O recomeço, em "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças", é um pacto pela imperfeição, pela nebulosidade
do que vem adiante na vida.
Sobretudo, um pacto pela
aventura "errada", meio cinematográfica, do viver a dois.
Uma sociedade acidental, em
nome da chance do acidente.
Recomeçar uma história afetiva, em "A Dona da História",
é a conciliação, o remendo final. Um grito de negação, estética inclusive, da vida como algo áspero ou indomável. Essas
coisas, entendemos, seriam
opostas à beleza, e a uma cartilha, a da Rede Globo.
A Dona da História
Produção: Brasil, 2004
Direção: Daniel Filho
Com: Marieta Severo, Antonio
Fagundes, Débora Falabella e Rodrigo
Santoro
Quando: a partir de amanhã nos
cines Anália Franco, Center Norte, Frei
Caneca Unibanco Arteplex, Pátio
Higienópolis e circuito
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