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CONTARDO CALLIGARIS
Vacinas contra as drogas
Os consumidores assíduos de cocaína, heroína ou
maconha que querem se livrar de
sua dependência encontram hoje
recursos químicos de duas classes.
Existem produtos que atenuam a
sensação de falta. E outros que
podem substituir cada uma das
drogas, oferecendo uma alternativa consolatória e -espera-se-
menos nociva.
Em todo caso, é fundamental
que o sujeito mantenha firme a
determinação de parar. Para ajudá-lo nisso, há programas de desintoxicação, grupos de interajuda etc.
Ora, um artigo publicado na
"New Scientist" de 10/6/2000 traz
uma novidade: é possível que verdadeiras vacinas contra as drogas
estejam prontas nos próximos três
anos. O princípio é o seguinte:
moléculas similares à molécula
de uma droga são associadas a
uma proteína que as torna detectáveis pelo sistema imunológico.
Elas podem, assim, servir de isca
para estimular a produção de anticorpos específicos.
Um preparado dessas moléculas é injetado no sujeito. A partir
daí, as moléculas de droga que
entrarem no corpo serão "reconhecidas" pelos anticorpos e aniquiladas, antes que a droga se
torne ativa no organismo. Macacos, ratos e humanos, uma vez vacinados, por mais que cheirem ou
injetem, não conseguem nenhum
barato. O sujeito pára de se drogar, porque a droga não faz efeito.
A idéia surgiu nos anos 70, com
uma vacina contra a heroína, que
funcionava (em macacos), mas
oferecia proteção por um tempo
muito curto. Nos anos 90, chegou
uma vacina contra a cocaína, que
foi mais bem-sucedida e está sendo testada em humanos. Há pesquisas em curso para quase todas
as drogas.
À primeira vista, o projeto inspira simpatia. As vacinas podem
ajudar os sujeitos que se desintoxicam e prevenir as recaídas.
Quem sabe, elas ajudem a sarar
as cracolândias das metrópoles
mundiais.
Mas a idéia das vacinas é também um exemplo da extraordinária desistência moral de nossa
cultura. Logo nós, modernos, inventores da liberdade individual,
parecemos confiar mais numa
modificação material de nossos
corpos do que em nossas livres escolhas e decisões. Pois se trata disso: alguém se injeta uma vacina
que torna a droga inoperante para que a tarefa de resistir aos
charmes da droga seja delegada
ao corpo. O sujeito pode afrouxar
sua determinação, pois os anticorpos se manterão intransigentes.
Por esse caminho, imaginemos
que alguém, por razões morais,
decida praticar o celibato e se
manter puro: em vez de disciplinar seus desejos incômodos, ele
deveria se capar. Se um dia chegássemos a identificar genes ou
zonas cerebrais responsáveis por
comportamentos que preferiríamos evitar (violência, agressividade, mentira etc.), por que não
pouparíamos nossos esforços éticos, recorrendo diretamente a alterações corporais?
Alguém achará que estou exagerando: afinal, quem decide tomar a vacina é o sujeito que quer
ser desintoxicado. Livremente, ele
resolveria nunca mais ser exposto
à tentação da droga.
Certo. Mas aposto que, se dispuséssemos de vacinas contra as
drogas, esqueceríamos de pedir o
consentimento dos vacinados.
Como evitar que um governo decida imunizar toda a população
"de risco" (a começar pela carcerária)? Como evitar que os pais
vacinem todos os seus rebentos?
Qualquer profissional ou pai que
conheça a inércia agressiva de um
maconheiro adolescente concordaria com essa decisão preventiva. Em pouco tempo, a vacina
contra as drogas seria obrigatória
e universal.
Se a imunização valesse para a
vida inteira (assim como é esperado), lamentaríamos um sério
empobrecimento da experiência
humana. Adeus, Thomas De
Quincy, Charles Baudelaire,
Allen Ginsberg e outros drogados.
Mas isso é o menos grave.
Eis o pior: quando um caminho
importante é impedido, os humanos sempre encontram outros jeitos e inventam desvios. Sobretudo
comportamentos que insistem e
se impõem (aparentemente) contra nossa vontade -como é o caso da toxicomania- não são escolhas de vida acidentais.
Eles são peças relevantes da engrenagem da personalidade. Por
isso não podem ser retirados como se fossem espinhos no pé. Torná-los fisicamente impossíveis
significa obrigar o sujeito a encontrar outros comportamentos
que tenham uma função análoga
na engrenagem. Ou seja, quem
renunciar a se drogar apenas porque seus anticorpos impedem a
ação da droga achará outros jeitos de gritar sua rebeldia ou sua
tristeza.
Em suma, os anticorpos policiarão, talvez, um dia, o uso das drogas. Evitaremos, assim, esforços
morais excessivos, e nossas vidas
serão, desse ponto de vista, normalizadas. Mas não é o caso de se
preocupar em demasia com a
chegada de um mundo uniforme
e aborrecido.
De fato, as vacinas antidrogas
(e remédios análogos) prometem
um mundo explosivo e incerto.
Eis por que: algum mal-estar psíquico e social mantém as drogas
bem perto do centro da experiência contemporânea. Se formos
imunizados contra as drogas, o
mal-estar será silenciado sem ser
ouvido. É inevitável que ele insista e volte a se dizer sob outras formas, imprevisíveis. E provavelmente com violência renovada.
E-mail - ccalligari@uol.com.br
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