São Paulo, segunda, 30 de novembro de 1998

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"MUNDÃO"
Galás canta a Aids e esconjura a igreja

Divulgação
Diamanda Galás faz show hoje no "Mundão"


PATRICIA DECIA
da Reportagem Local

Diamanda Galás é maldita. Foi condenada por blasfêmia na Itália por "Plague Mass", seu réquiem aos mortos pela Aids.
Foi fotografada numa cruz em chamas por Annie Leibovitz. Fez música para filmes de Wes Craven. Participou da trilha de "Drácula" de Francis Ford Coppola. Gravou um CD de amor e assassinato com o ex-Led Zeppelin John Paul Jones. Decretou que os EUA são a morada do diabo. E hoje se apresenta em São Paulo, com o show "Malediction and Prayer", no "Mundão" do Sesc Santo Amaro.
Considerada uma das vozes mais virtuosas do pop, Galás (americana de origem grega) vai mostrar em uma hora e meia, sozinha no palco com seu piano, músicas de B.B. King, Johnny Cash e Phil Ochs. A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha, por telefone, de Nova York.
Folha - Você não canta sobre coisas muito alegres.
Diamanda Galás -
Muitos dos temas são sombrios, mas acho que, quando você os confronta, vive mais em paz do que se tenta fingir que não existem. Prefiro isso a um sentimentalismo pop estúpido.
Folha - O que a levou a isso?
Galás -
Num certo momento da minha vida, as coisas ficaram muito sombrias, a ponto de não conseguir me expressar. Senti que precisava achar outra maneira e comecei a trabalhar a voz. No início, não tinha temas, transformava o que sentia em sons. Mas tinha de lidar com tortura, suicídio, doença, isolamento e outros assuntos pesados. É algo na minha história.
Folha - O que acha de ser considerada uma diva?
Galás -
(ri) Nos EUA, qualquer vagabunda que pegue num microfone é considerada uma diva. Nem sei mais o que essa palavra significa. Tudo o que tenho a dizer é que sou uma cantora excelente, sei o que faço no palco e tento ser profissional.
Folha - Você acha que anda faltando inspiração?
Galás -
Não sei quanto ao Brasil, mas conheço os EUA. Há muita merda passando por música e muitas mulheres que ficam nesse joguinho de ser cantoras. Elas são tão fracas! Não tem nada a ver com a minha cultura ou cantoras poderosas como Maria Callas.
Folha - Patti Smith se recusou a participar de uma edição especial da "Rolling Stone" sobre mulheres dizendo que música não é uma questão de gênero. O que acha?
Galás -
Ela está certa. Era uma edição estúpida! Eles me odeiam naquela revista republicana. Patti Smith não estava interessada em fazer parte desse comercial de calcinhas! Esses críticos não gostam de mim, de Patti Smith ou Bjork, de nenhuma cantora que tenham algo na cabeça. Sou uma mulher, com certeza. Mas quando estou no palco, gosto de pensar que sou várias coisas ao mesmo tempo.
Folha - Ao usar textos do poeta Charles Baudelaire e do cineasta Pier Paolo Pasolini nos seus espetáculos, o que pretende?
Galás -
Eles são meus irmãos de sangue e eu os levo a todo lugar. Me dão força. Também acho que minha música é uma boa mídia para o trabalho deles, que é muito litúrgico. Especialmente Baudelaire é muito determinado. "Abel e Caim", por exemplo, é uma maldição e, de certa forma, uma praga.
Folha - Com "Plague Mass", um espetáculo com a estrutura de uma missa falando sobre doentes de Aids, você foi condenada na Itália por blasfêmia. Como se relaciona com a religião?
Galás -
Tenho origem grega, que na realidade é pagã, e gosto da igreja ortodoxa grega, que ajudou muita gente. Mas tive de criar minha própria religião. Muitos dos meus amigos, das pessoas na comunidade da Aids ou com problemas políticos também tiveram. Essa religião é a lealdade.
Muitas igrejas nos EUA vêem os aidéticos como pecadores. É criminoso. "Plague Mass" não foi um ataque, não me importo com a Igreja Católica, mas gostaria que parassem de se intrometer.
Folha - Você gostaria de trabalhar com alguém como John Paul Jones, ex-Led Zeppelin, de novo?
Galás -
Ele é ótimo. Quando o encontrei, disse que queria fazer um disco de canções de amor e assassinato, em que a mulher está insatisfeita com o amante e passa a metade do tempo o agredindo com faca, revólver etc. Foi um pouco sarcástico demais para os britânicos. No mundo masculino da música, é sempre "vou matar a mulher". Há 20 anos é a mesma situação. Estou rindo disso! Quero amarrar o cara, deixá-lo lá, desamarrar, transar, voltar a amarrá-lo na geladeira e ir às compras. Sou grega, tenho outra sensibilidade. Humor negro, não essa merda sentimentalóide.
Folha - Você acha que isso é culpa da indústria?
Galás -
Sim, a indústria é administrada por homens, e é lógico que eles gostam de músicas em que as mulheres são mortas. E adoram músicas sobre mulheres fazendo sexo oral com homens. Mas eu canto o que eu quero. E, se eles não gostam, podem "kiss my ass".

Veja a programação do "Mundão" no site



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