São Paulo, segunda, 30 de novembro de 1998

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Privacidade e o escândalo dos grampos telefônicos

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha ² Quase não se fala mais no escândalo do grampo. Rolaram cabeças, fizeram discursos e abaixo-assinados e pronto, o escândalo mergulha suavemente para o fundo do lago, onde repousam, cobertos das mais suspeitas algas, todos os outros escândalos.
Há mais de quatro anos que tento formular um projeto amplo de defesa da privacidade. Deixei para o próximo período, porque não encontrei interesse de quase ninguém ou procurei pessoas que estavam em outros projetos mais urgentes.
Tanto tempo demorei que os mais recentes livros sobre o tema me asseguram que minha preocupação está superada.
Já não se trata mais da luta pela privacidade que surgiu nas duas últimas décadas nos países chamados desenvolvidos. Era uma luta com conteúdo ideológico, marcada pela aparição da informática e pela possibilidade de o Estado controlar potentes computadores.
Em "Technology and Privacy: The New Landscape", Simon G. Davies garante que o direito à privacidade está sofrendo um processo de transformação, tornando-se muito mais uma preocupação em proteger dados do que propriamente pessoas. O indivíduo perde um pouco de espaço para o consumidor que realiza inúmeras transações comerciais pela rede global de comunicações.
Acredito que isso seja verdadeiro, embora o próprio livro, editado por Philip Agre e Marc Rotenberg, registre o surgimento de uma nova geração de militantes da privacidade, orientados mais para as novas possibilidades tecnológicas e colocando a possibilidade de criptografar suas mensagens como um dos novos temas de debate público.
O que fazer no Brasil, onde a primeira fase não chegou a existir e é preciso integrar também as particularidades de um novo momento? O atraso poderia ter sido superado se tivéssemos unido num bloco o episódio das eleições do Rio, no qual o conteúdo de um grampo tornou-se tema de campanha, e as gravações que culminaram com a queda de ministros e altos dirigentes.
No Rio, a gravação contra o candidato Garotinho foi usada até o momento em que a Justiça bloqueou sua divulgação. No caso do ministro, o interesse público acabou sendo o argumento que fez das fitas gravadas peças-multimídia da política : uma edição via Internet foi colocada à disposição do público poucos dias depois de terem sido divulgadas, amplamente, as fitas de Monica Lewinsky, confessando que, ao olhar dentro dos olhos do presidente Clinton, se apaixonou por ele.
O grande embaraço em gravações feitas para desvendar uma transgressão política é que elas rodam ininterruptamente. Caem na sua rede informações de interesse público e relatos íntimos, pessoais. A justiça política se realiza com a máxima que tornou mais cinzento o século 20: "Os fins justificam os meios".
O livro, editado pela MIT Press, apresenta uma definição de privacidade que é a capacidade de negociar relações sociais, controlando o acesso das informações sobre si mesmo. Esse front, no meu entender, nunca poderá ignorar o indivíduo com suas relações sentimentais, embora não se deva abandonar também o terreno do direito do consumidor.
Essas duas coisas se harmonizam com a emergência do telefone celular. Quando tentamos examinar a capacidade de controle que a TeleBrasília tem sobre os celulares na cidade, constatamos que era incapaz de detectar grampos, feitos com mecanismos modernos e acessíveis, sobretudo em Miami.
Essa incapacidade não era notada apenas num dos lados, mas também na própria indústria. Os telefones celulares, se não desenvolvem mecanismos contra o rastreamento, deveriam registrar no seu manual que são vulneráveis a rastreamentos.
Isso pelo menos poderia gerar uma nova cultura no uso dos celulares até que as empresas dessem o salto tecnológico necessário para proteger as conexões. E poderia também colocar um desafio às empresas telefônicas. O fato de o grampo ter surgido a propósito da privatização das teles dramatiza esse ângulo da questão.
No momento em que se prepara para adotar os mais modernos sistemas de telecomunicação, o escândalo político se materializa em gravações clandestinas. Isso revela a fragilidade do salto tecnológico se não vem subordinado a certas questões. Por exemplo: vamos poder falar de qualquer lugar para qualquer lugar, mas teremos privacidade?
Como há a dimensão individual e a do consumidor, seria bom um debate que envolvesse todos os lados e pudesse fazer com que o Brasil produzisse uma reflexão sobre o tema que fosse adequada às condições nacionais.
O governo brasileiro sentiu-se atingido, tentou colocar a questão, mas não superou aquelas clássicas advertências morais à imprensa. São tantos os fatores em jogo, inclusive os econômicos, que era preciso muito mais.
Como esse governo dobra, acaba e recomeça em janeiro, até que não faria mal um certo desejo de Fênix, uma promessa de renascer sem reclamar, buscando novos horizontes.
Reconhece-se que governo não é o aspecto principal nessa luta porque muitos dos temores dos indivíduos se referem ao controle dos dados pelo Estado e a resistência à criptografia é também, nos EUA, de origem oficial.
Se a questão da privacidade for discutida, vai parecer, a princípio, uma conversa de elite. Isso não é obstáculo. Logo em seguida, vamos constatar como os direitos dos mais pobres são constantemente violados e as câmeras de reportagens policiais, por exemplo, devassam barracos como se fossem um não-lugar, um cenário. Há uma chance de empurrar a discussão, pelo menos antes do próximo grampo.



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