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Privacidade e o escândalo dos grampos telefônicos
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
²
Quase não se fala mais no escândalo do grampo. Rolaram
cabeças, fizeram discursos e
abaixo-assinados e pronto, o escândalo mergulha suavemente
para o fundo do lago, onde repousam, cobertos das mais suspeitas algas, todos os outros escândalos.
Há mais de quatro anos que
tento formular um projeto amplo de defesa da privacidade.
Deixei para o próximo período,
porque não encontrei interesse
de quase ninguém ou procurei
pessoas que estavam em outros
projetos mais urgentes.
Tanto tempo demorei que os
mais recentes livros sobre o tema me asseguram que minha
preocupação está superada.
Já não se trata mais da luta
pela privacidade que surgiu nas
duas últimas décadas nos países
chamados desenvolvidos. Era
uma luta com conteúdo ideológico, marcada pela aparição da
informática e pela possibilidade
de o Estado controlar potentes
computadores.
Em "Technology and Privacy:
The New Landscape", Simon G.
Davies garante que o direito à
privacidade está sofrendo um
processo de transformação, tornando-se muito mais uma
preocupação em proteger dados
do que propriamente pessoas. O
indivíduo perde um pouco de
espaço para o consumidor que
realiza inúmeras transações comerciais pela rede global de comunicações.
Acredito que isso seja verdadeiro, embora o próprio livro,
editado por Philip Agre e Marc
Rotenberg, registre o surgimento de uma nova geração de militantes da privacidade, orientados mais para as novas possibilidades tecnológicas e colocando a possibilidade de criptografar suas mensagens como um
dos novos temas de debate público.
O que fazer no Brasil, onde a
primeira fase não chegou a existir e é preciso integrar também
as particularidades de um novo
momento? O atraso poderia ter
sido superado se tivéssemos
unido num bloco o episódio das
eleições do Rio, no qual o conteúdo de um grampo tornou-se
tema de campanha, e as gravações que culminaram com a
queda de ministros e altos dirigentes.
No Rio, a gravação contra o
candidato Garotinho foi usada
até o momento em que a Justiça
bloqueou sua divulgação. No
caso do ministro, o interesse público acabou sendo o argumento que fez das fitas gravadas peças-multimídia da política :
uma edição via Internet foi colocada à disposição do público
poucos dias depois de terem sido divulgadas, amplamente, as
fitas de Monica Lewinsky, confessando que, ao olhar dentro
dos olhos do presidente Clinton,
se apaixonou por ele.
O grande embaraço em gravações feitas para desvendar uma
transgressão política é que elas
rodam ininterruptamente.
Caem na sua rede informações
de interesse público e relatos íntimos, pessoais. A justiça política se realiza com a máxima que
tornou mais cinzento o século
20: "Os fins justificam os
meios".
O livro, editado pela MIT
Press, apresenta uma definição
de privacidade que é a capacidade de negociar relações sociais, controlando o acesso das
informações sobre si mesmo. Esse front, no meu entender, nunca poderá ignorar o indivíduo
com suas relações sentimentais,
embora não se deva abandonar
também o terreno do direito do
consumidor.
Essas duas coisas se harmonizam com a emergência do telefone celular. Quando tentamos
examinar a capacidade de controle que a TeleBrasília tem sobre os celulares na cidade, constatamos que era incapaz de detectar grampos, feitos com mecanismos modernos e acessíveis,
sobretudo em Miami.
Essa incapacidade não era notada apenas num dos lados,
mas também na própria indústria. Os telefones celulares, se
não desenvolvem mecanismos
contra o rastreamento, deveriam registrar no seu manual
que são vulneráveis a rastreamentos.
Isso pelo menos poderia gerar
uma nova cultura no uso dos
celulares até que as empresas
dessem o salto tecnológico necessário para proteger as conexões. E poderia também colocar
um desafio às empresas telefônicas. O fato de o grampo ter
surgido a propósito da privatização das teles dramatiza esse
ângulo da questão.
No momento em que se prepara para adotar os mais modernos sistemas de telecomunicação, o escândalo político se materializa em gravações clandestinas. Isso revela a fragilidade
do salto tecnológico se não vem
subordinado a certas questões.
Por exemplo: vamos poder falar
de qualquer lugar para qualquer lugar, mas teremos privacidade?
Como há a dimensão individual e a do consumidor, seria
bom um debate que envolvesse
todos os lados e pudesse fazer
com que o Brasil produzisse
uma reflexão sobre o tema que
fosse adequada às condições
nacionais.
O governo brasileiro sentiu-se
atingido, tentou colocar a questão, mas não superou aquelas
clássicas advertências morais à
imprensa. São tantos os fatores
em jogo, inclusive os econômicos, que era preciso muito mais.
Como esse governo dobra,
acaba e recomeça em janeiro,
até que não faria mal um certo
desejo de Fênix, uma promessa
de renascer sem reclamar, buscando novos horizontes.
Reconhece-se que governo
não é o aspecto principal nessa
luta porque muitos dos temores
dos indivíduos se referem ao
controle dos dados pelo Estado
e a resistência à criptografia é
também, nos EUA, de origem
oficial.
Se a questão da privacidade
for discutida, vai parecer, a
princípio, uma conversa de elite. Isso não é obstáculo. Logo
em seguida, vamos constatar
como os direitos dos mais pobres são constantemente violados e as câmeras de reportagens
policiais, por exemplo, devassam barracos como se fossem
um não-lugar, um cenário. Há
uma chance de empurrar a discussão, pelo menos antes do
próximo grampo.
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