São Paulo, Segunda-feira, 31 de Janeiro de 2000


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"APRILE"

da Redação



"Aprile" mostra como uma comédia pode ser feita quebrando as fronteiras entre ficção e documentário. Se o riso tem sempre um significado social -já dizia um especialista no assunto, o filósofo Henri Bergson-, Nanni Moretti vai com os olhos postos na sociedade extrair o trágico, o cômico e o sublime do banal.
O diretor retoma o que havia começado em "Caro Diário", de 1993, ao apresentar reflexões sobre o cinema e a criação a partir do nascimento de seu primeiro filho. Moretti se divide entre o desejo de fazer um musical dos anos 50, cujo protagonista é um caricato doceiro trotskista, e um documentário político sobre as eleições em seu país, Itália.
Tudo sob a espreita do nascimento de seu filho. Pretexto ideal para o diretor adiar constantemente as filmagens, o que gera situações das mais engraçadas, como as longas discussões pela escolha do nome do bebê, sua futura profissão, a necessidade de introduzi-lo ao cinema (isso antes mesmo de nascer), levando a mãe a sessões especiais. Há ainda a esquizofrenia do pai com o ritual do parto, o primeiro banho e as roupas. Em plena discussão sobre os rumos do documentário com a equipe, Moretti desiste das gravações para ver a primeira amamentação do filho. São situações de humor leve e cotidiano, que Moretti representa com carisma.
O filme se constrói sob a ambivalência entre o desejo de ficção e a necessidade documental. A cena inicial mostra a vitória de Berlusconi, o grande patrono da televisão comercial italiana, em 28 de março de 1994. Abre-se aí uma outra discussão importante no filme: a busca pela realidade na era da reprodução das mídias -o vazio dos discursos políticos, seja de esquerda, seja de direita, as notícias da imprensa e a perda do valor cognitivo das palavras.
Para compor o documentário, Moretti faz uma longa pesquisa, recortando, colando e separando notícias de jornal. Acaba por descobrir que os textos são tão clones que o único fim desejável é o de servir como cobertor, o que faz de fato, compondo uma "colagem pop" -símbolo da crise das palavras e das ideologias.
Qual o significado de ser de esquerda ou de direita hoje? Um dos personagens do filme, um jornalista francês, diz que a situação política da Itália é "pitoresca": "Uma democracia com um partido fascista no governo".
Mas o descontentamento com a esquerda também é nítido no filme. O diretor retrata a inconstância do PDS (Partido Democrático de Esquerda), que fecha os olhos para as minorias na Itália (exemplo da bela sequência documental em que registra o navio de refugiados albaneses, em 1997). Visão moral que aproxima Moretti da tradição de Pasolini e Rossellini.
Na impossibilidade de politicamente filmar a política, Moretti opta pela comédia musical e faz de "Aprile" um caleidoscópio, em que todas as esferas estão presentes: do pai ao cineasta, do cidadão que envelhece à infância que ressurge, dos projetos que se vão e dos eternos por vir, do íntimo ao social. Um belíssimo filme, paradoxal, de cortes efêmeros, um "work in progress", como a própria vida. (SG)



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Lançamento: Aprile
Título original: Aprile
Produção: Itália, 1998
Distribuidora: Cult





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