São Paulo, Segunda-feira, 31 de Janeiro de 2000


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FERNANDO GABEIRA

Variações em torno da tenente Kênia

Os maiores jornais do Brasil publicaram, no meio da semana, a foto da tenente Kênia, ajudante de ordens do governador Itamar Franco.
Jornalista, você sabe, publica uma foto com uma legenda bem inocente, mas não esconde suas intenções. Imagino o redator diante da foto de uma linda mulher vestida de branco, morena, 25 anos, moldada na educação física da PM mineira. É um redator como qualquer um de nós, preocupado com o preço do aparelho dentário do filho, com escapadas da mulher na academia para prosseguir a inglória luta contra as calorias. Esse homem olha a foto da tenente Kênia e diz para o colega: "Viu que mulher interessante ao lado do Itamar?". "Aí tem coisa", diz o colega apenas com o olhar.
O resultado é que a sugestão de romance corre no ar. Kênia de branco, carregada de pastas com processos administrativos, Itamar meio em segundo plano. Pronto, está selada mais uma história de amor, verdadeira ou não, besamemucho ou não, que circulará pelas colunas, varrerá os corredores dos congressos e assembléias e, Deus queira que não, pode terminar na ilha de "Caras".
Não tenho assim grande moral para criticar jornalistas. No tempo da Lilian Ramos, aquela que apareceu no desfile de escola de samba ao lado de Itamar, já tinha mais de 50 anos e ainda era repórter de temas cotidianos. Lembro-me de que me desloquei até o apartamento de Lilian, na Antônio Parreiras, ali em Ipanema, para entrevistá-la sobre o futuro de sua periquita, transformada subitamente em celebridade internacional.
Antecipando-se à onda italiana que domina a terra nostra, Lilian se mandou para Roma.
Se um jornalista, desses bambambãs, vai fazer uma palestra na universidade, defenderá esse tipo de matéria, dizendo que tudo o que se passa com o homem público no campo sentimental deve ser divulgado, são informações vitais porque influem no destino do país.
Talvez seja isso mesmo. No entanto, essa nossa profissão baseada na curiosidade permanente pode ter uma origem lá atrás, na descoberta do talento propriamente jornalístico, que tem a ver com essa história da tenente Kênia, substituta, no imaginário dos coleguinhas, da capitã Xota, que partiu para a Itália. É o desejo de descobrir o amor escondido, de trazer para a luz do dia o roçar de pernas no carro oficial, a troca de olhares entre duas audiências.
É como se estivéssemos sempre buscando aquilo que os psicanalistas chamam de cena primária, o ato amoroso entre pai e mãe.
Os jornais já descobriram, atrás da bisbilhotice de funcionários do Othon Palace, que Itamar e Kênia se deram as mãos e que ele comprou alguns presentes para ela. Todos nós, jornalistas, sabemos também que há gente que, desde que mantido o anonimato, está disposta a dizer tudo o que se queira, de um simples aperto de mão até o inequívoco batom na cueca.
É meio difícil defender Itamar porque ele aprontou muito. Aquela ministra dos Transportes que ele inventou foi uma escolha tão esquisita que o próprio marido se deslocou para o ministério e se transformou em chefe de gabinete, numa versão palaciana daquela frase de barraco: "A nega é minha e ninguém tasca".
No entanto, sua privacidade deveria ser menos atingida, sobretudo por causa da tenente Kênia. E se ela for apenas uma auxiliar e amanhã se casa com o major Gonçalves e se instala no aprazível bairro de Funcionários em Belo Horizonte? Seu nome ficará para sempre ligado ao do governador que a levou para o Rio e foi visto dando um presentinho para ela por anônimos funcionários do Othon Palace.
Claro que nem o major Gonçalves, nem os filhos do casal vão se importar muito com essa história. Mas uma mulher de 25 anos que se torna tenente, possivelmente vinda de família humilde, já conquistou um grande caminho. Até que ponto sua carreira não vai ser bloqueada por esse incidente, até que ponto ela não pagará um alto preço por ser bonita, vestida de branco e carregar as pastas do governador Itamar?
Lilian Ramos era modelo e atriz, do gênero que sai em desfile de escola de samba. Ela adorou o escândalo e o considerou um estímulo. A tenente Kênia, como o próprio nome indica, é uma PM que não pode dizer para os boatos aquilo que os PMs dizem para a multidão: "Vamos circular, vamos circular".
E se Itamar e a tenente Kênia forem apenas dois amigos, se ajudando, no tédio dos gabinetes, a galgar a montanha dos processos administrativos? Mas aí já será tarde demais. Onde bate o nosso olhar não nasce a platônica grama das relações de amizade. Como aquele torcedor de Nelson Rodrigues que, do alto da arquibancada, pedia fratura exposta, de nossas mesas na redação procuramos moças de branco para dilacerar seus preciosos himens, velhos governantes para transformá-los em sátiros, tudo em duas colunas corridas, título de 34 batidas, tudo muito depressa, porque não temos tempo a perder.



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