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FERNANDO GABEIRA
Variações em torno da tenente Kênia
Os maiores jornais do Brasil publicaram, no meio da semana, a
foto da tenente Kênia, ajudante
de ordens do governador Itamar
Franco.
Jornalista, você sabe, publica
uma foto com uma legenda bem
inocente, mas não esconde suas
intenções. Imagino o redator
diante da foto de uma linda mulher vestida de branco, morena,
25 anos, moldada na educação física da PM mineira. É um redator
como qualquer um de nós, preocupado com o preço do aparelho
dentário do filho, com escapadas
da mulher na academia para
prosseguir a inglória luta contra
as calorias. Esse homem olha a foto da tenente Kênia e diz para o
colega: "Viu que mulher interessante ao lado do Itamar?". "Aí
tem coisa", diz o colega apenas
com o olhar.
O resultado é que a sugestão de
romance corre no ar. Kênia de
branco, carregada de pastas com
processos administrativos, Itamar meio em segundo plano.
Pronto, está selada mais uma história de amor, verdadeira ou não,
besamemucho ou não, que circulará pelas colunas, varrerá os corredores dos congressos e assembléias e, Deus queira que não, pode terminar na ilha de "Caras".
Não tenho assim grande moral
para criticar jornalistas. No tempo da Lilian Ramos, aquela que
apareceu no desfile de escola de
samba ao lado de Itamar, já tinha mais de 50 anos e ainda era
repórter de temas cotidianos.
Lembro-me de que me desloquei
até o apartamento de Lilian, na
Antônio Parreiras, ali em Ipanema, para entrevistá-la sobre o futuro de sua periquita, transformada subitamente em celebridade internacional.
Antecipando-se à onda italiana
que domina a terra nostra, Lilian
se mandou para Roma.
Se um jornalista, desses bambambãs, vai fazer uma palestra
na universidade, defenderá esse
tipo de matéria, dizendo que tudo
o que se passa com o homem público no campo sentimental deve
ser divulgado, são informações vitais porque influem no destino do
país.
Talvez seja isso mesmo. No entanto, essa nossa profissão baseada na curiosidade permanente
pode ter uma origem lá atrás, na
descoberta do talento propriamente jornalístico, que tem a ver
com essa história da tenente Kênia, substituta, no imaginário dos
coleguinhas, da capitã Xota, que
partiu para a Itália. É o desejo de
descobrir o amor escondido, de
trazer para a luz do dia o roçar de
pernas no carro oficial, a troca de
olhares entre duas audiências.
É como se estivéssemos sempre
buscando aquilo que os psicanalistas chamam de cena primária,
o ato amoroso entre pai e mãe.
Os jornais já descobriram, atrás
da bisbilhotice de funcionários do
Othon Palace, que Itamar e Kênia se deram as mãos e que ele
comprou alguns presentes para
ela. Todos nós, jornalistas, sabemos também que há gente que,
desde que mantido o anonimato,
está disposta a dizer tudo o que se
queira, de um simples aperto de
mão até o inequívoco batom na
cueca.
É meio difícil defender Itamar
porque ele aprontou muito.
Aquela ministra dos Transportes
que ele inventou foi uma escolha
tão esquisita que o próprio marido se deslocou para o ministério e
se transformou em chefe de gabinete, numa versão palaciana daquela frase de barraco: "A nega é
minha e ninguém tasca".
No entanto, sua privacidade deveria ser menos atingida, sobretudo por causa da tenente Kênia. E
se ela for apenas uma auxiliar e
amanhã se casa com o major
Gonçalves e se instala no aprazível bairro de Funcionários em Belo Horizonte? Seu nome ficará para sempre ligado ao do governador que a levou para o Rio e foi
visto dando um presentinho para
ela por anônimos funcionários do
Othon Palace.
Claro que nem o major Gonçalves, nem os filhos do casal vão se
importar muito com essa história.
Mas uma mulher de 25 anos que
se torna tenente, possivelmente
vinda de família humilde, já conquistou um grande caminho. Até
que ponto sua carreira não vai ser
bloqueada por esse incidente, até
que ponto ela não pagará um alto
preço por ser bonita, vestida de
branco e carregar as pastas do governador Itamar?
Lilian Ramos era modelo e
atriz, do gênero que sai em desfile
de escola de samba. Ela adorou o
escândalo e o considerou um estímulo. A tenente Kênia, como o
próprio nome indica, é uma PM
que não pode dizer para os boatos
aquilo que os PMs dizem para a
multidão: "Vamos circular, vamos circular".
E se Itamar e a tenente Kênia
forem apenas dois amigos, se ajudando, no tédio dos gabinetes, a
galgar a montanha dos processos
administrativos? Mas aí já será
tarde demais. Onde bate o nosso
olhar não nasce a platônica grama das relações de amizade. Como aquele torcedor de Nelson Rodrigues que, do alto da arquibancada, pedia fratura exposta, de
nossas mesas na redação procuramos moças de branco para dilacerar seus preciosos himens, velhos governantes para transformá-los em sátiros, tudo em duas
colunas corridas, título de 34 batidas, tudo muito depressa, porque
não temos tempo a perder.
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