São Paulo, sexta, 31 de janeiro de 1997.

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Filme é conflito não resolvido

JOSÉ CARLOS AVELLAR
especial para a Folha

Desde o primeiro filme, a relação entre o realizador e o espectador de imagens passou a se dar entre o sonho de humanização da máquina e o pesadelo da maquinização do homem.
``Crash'', de David Cronemberg, procura se inserir nesse espaço, mas o faz com uma imaginação mecânica.
Pega o carro, ou mais precisamente, o instante da colisão de dois carros como uma parábola ou representação do ato sexual; mais que isso: pega o choque de dois carros como a essência do sexo.
A idéia de "uma história de amor futurista", e mostrar "acidentes de carros como uma metáfora da colisão entre a tecnologia atual e o psiquismo humano", são promessas que não se concretizam.
Resumir a história pode levar o leitor a imaginar coisas que não se encontram em ``Crash''. Cronenberg trabalha a relação homem-máquina assim como muitos antes dele o fizeram, mas age mecanicamente.
``Crash'' leva o espectador a viver um ritual idêntico ao dos seus personagens, não propriamente um ritual de horror, mas de repugnância.
A talvez mais precisa observação crítica a esse filme foi feita no último Festival de Cannes. O diretor inglês Mike Leigh, de ``Segredos e Mentiras'', disse algo assim como certa vez disse Bu¤uel: que cinema só se faz se na hora de filmar o diretor dá um chute na câmera, esquece a máquina.
Cinema só tem sentido se guiado por uma forma de humanismo. Ao lado dele, Cronenberg deu umas tantas cambalhotas no ar (como carro pouco antes de saltar da estrada em filme de Hollywood) para explicar que seu filme também era guiado por um pensamento humanista.
Leigh reafirmou o que dissera antes. Cronenberg não fez mais observações. E no breve instante em que tudo ficou em silêncio fez-se uma imagem que, com certeza, para quem estava lá, passou a fazer parte de ``Crash''; e a ser talvez sua melhor imagem, porque revela o conflito não resolvido.


José Carlos Avellar é diretor da distribuidora e produtora Rio Filme

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