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CARLOS HEITOR CONY
O muro e o papa no universo da imagem
Todos os jornais do mundo, com
mais ou menos destaque, publicaram a foto do papa João Paulo 2º
diante do Muro das Lamentações,
em Jerusalém. Aparentemente,
uma foto convencional, ao fim de
uma visita que terminaria com
um gesto de gentileza do líder de
uma religião ao símbolo sagrado
de outra.
Alguma coisa parecida com a
coroa de flores que um chefe de
Estado visitante coloca no monumento ao soldado desconhecido
do país visitado, apesar de que
muitos dos soldados desconhecidos do país visitado tenham sido
mortos pelos soldados desconhecidos do país do visitante -ou vice-versa.
Esta primeira leitura da foto é
legítima, mas superficial. Legítima porque o papa teria de prestar
uma homenagem qualquer ao
país que visitava como peregrino.
Mas superficial porque ignorou o
encontro dos dois maiores ícones
da civilização ocidental: o muro e
o papa.
Queiramos ou não, o Ocidente
formou-se, no que tem de bom e
de mau, a partir desses dois símbolos históricos. Não interessa definir o muro como um amontoado de pedras retangulares, corroídas pelo tempo. E que o papa é um
simples homem de carne e osso,
também corroído pelo tempo.
O muro é o único vestígio visível
do templo de Herodes, o segundo,
destruído pelos romanos no ano
70, quando o judaísmo, já enfraquecido pelo domínio de Roma,
ficou mais enfraquecido com a cisão de uma seita nascida ali mesmo, no seio dos judeus que se denominavam cristãos.
A soma das duas fraquezas, a
política e a religiosa, deu pretexto
a que o império destruísse o coração da pátria do Livro, não deixando pedra sobre pedra. O que
não foi inteiramente verdade.
Sempre sobraram algumas pedras, umas em cima de outras,
formando o que hoje conhecemos
como Muro das Lamentações.
Passaram-se 2.000 anos. Aos romanos, sucederam os otomanos,
depois os cruzados e os ingleses.
Terra santa e terra de ninguém,
somente após a Segunda Guerra
Mundial ou, mais precisamente,
após a Guerra dos Seis Dias, o
muro voltaria não a dividir os judeus, mas a uni-los materialmente, uma vez que, no campo espiritual, eles atravessaram os 2.000
anos de diáspora marcando encontro para o próximo ano em Jerusalém, diante daquelas pedras
para eles sagradas.
Por sua vez, o papa de carne e
osso tem sobre sua cabeça o peso
de uma tradição apostólica que
nasceu ao redor daquele mesmo
muro. O papa, com a civilização
cristã que ele representa, é um ramo que brotou de um chão árido,
feito de areia e pedra, mas que
frutificou na medida em que emigrou. E, do áspero solo de uma Jerusalém conquistada, cresceu no
chão fértil de uma Roma coberta
de mármore e cabeça do mundo.
Foram séculos de separação, de
incompreensão, o galho bem-sucedido asfixiando o tronco primitivo. A história do Ocidente, em
certo sentido, é a própria crônica
dessa luta que teve tréguas e momentos críticos. O mais forte materialmente usou do direito da
força, como qualquer outro vitorioso. Mas não podia esquecer a
raiz comum, o tronco inicial de
onde nascera -e isso perturbou a
consciência cristã ao longo de
2.000 anos.
E não por acaso no ano 2000,
também um símbolo convencional no território dos símbolos, os
dois ícones, o velho e o novo, se encontram frente a frente. Não vem
ao caso discutir a sinceridade da
mensagem que o papa deixou no
muro, o pedido de perdão, formal
e genérico, por tudo o que houve
nestes 20 séculos.
Nenhum homem na face da
Terra poderá duvidar da sinceridade pessoal daquele polonês, encurvado e trêmulo, que se inclinou diante daquelas pedras. E nelas colocou o seu nome assinando
uma mensagem de humildade e
paz, como se fosse um judeu a
mais, que ali deposita sua prece
ao Deus de Israel -o mesmo
Deus dos cristãos.
Mas a história é um processo
muitas vezes pendular. Assim como o judaísmo se abriu numa seita dissidente que com o tempo se
tornou inimiga, o cristianismo
também se fragmentou em seitas
e subseitas que o agrediram com
violência igual. Contrariando
Marx, a história da humanidade
só é uma luta de classes num segundo estágio. Na primeira etapa,
a luta é pelo domínio de uma visão do mundo.
Visão do mundo não deixa de
ser uma imagem. Deus criou o homem à sua imagem. A era que vivemos é a da imagem. Há uma
convergência estranha no pórtico
deste novo milênio, em que tudo
se resume àquela imagem que, lá
atrás, no gênesis de nossa civilização, criou a lenda de um Deus nos
fazendo à imagem de si próprio.
Daí a importância da foto que,
apesar de divulgada em todos os
jornais do mundo, passou despercebida de seu caráter fundamental e civilizatório. Os dois símbolos
maiores do Ocidente, o ícone
branco e o ícone cor-de-pedra,
frente a frente, 2.000 anos após
tanta luta, tanta incompreensão,
tanto medo e tanta dor.
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