São Paulo, sexta-feira, 31 de março de 2000


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CARLOS HEITOR CONY
O muro e o papa no universo da imagem

Todos os jornais do mundo, com mais ou menos destaque, publicaram a foto do papa João Paulo 2º diante do Muro das Lamentações, em Jerusalém. Aparentemente, uma foto convencional, ao fim de uma visita que terminaria com um gesto de gentileza do líder de uma religião ao símbolo sagrado de outra.
Alguma coisa parecida com a coroa de flores que um chefe de Estado visitante coloca no monumento ao soldado desconhecido do país visitado, apesar de que muitos dos soldados desconhecidos do país visitado tenham sido mortos pelos soldados desconhecidos do país do visitante -ou vice-versa.
Esta primeira leitura da foto é legítima, mas superficial. Legítima porque o papa teria de prestar uma homenagem qualquer ao país que visitava como peregrino. Mas superficial porque ignorou o encontro dos dois maiores ícones da civilização ocidental: o muro e o papa.
Queiramos ou não, o Ocidente formou-se, no que tem de bom e de mau, a partir desses dois símbolos históricos. Não interessa definir o muro como um amontoado de pedras retangulares, corroídas pelo tempo. E que o papa é um simples homem de carne e osso, também corroído pelo tempo.
O muro é o único vestígio visível do templo de Herodes, o segundo, destruído pelos romanos no ano 70, quando o judaísmo, já enfraquecido pelo domínio de Roma, ficou mais enfraquecido com a cisão de uma seita nascida ali mesmo, no seio dos judeus que se denominavam cristãos.
A soma das duas fraquezas, a política e a religiosa, deu pretexto a que o império destruísse o coração da pátria do Livro, não deixando pedra sobre pedra. O que não foi inteiramente verdade. Sempre sobraram algumas pedras, umas em cima de outras, formando o que hoje conhecemos como Muro das Lamentações. Passaram-se 2.000 anos. Aos romanos, sucederam os otomanos, depois os cruzados e os ingleses. Terra santa e terra de ninguém, somente após a Segunda Guerra Mundial ou, mais precisamente, após a Guerra dos Seis Dias, o muro voltaria não a dividir os judeus, mas a uni-los materialmente, uma vez que, no campo espiritual, eles atravessaram os 2.000 anos de diáspora marcando encontro para o próximo ano em Jerusalém, diante daquelas pedras para eles sagradas.
Por sua vez, o papa de carne e osso tem sobre sua cabeça o peso de uma tradição apostólica que nasceu ao redor daquele mesmo muro. O papa, com a civilização cristã que ele representa, é um ramo que brotou de um chão árido, feito de areia e pedra, mas que frutificou na medida em que emigrou. E, do áspero solo de uma Jerusalém conquistada, cresceu no chão fértil de uma Roma coberta de mármore e cabeça do mundo.
Foram séculos de separação, de incompreensão, o galho bem-sucedido asfixiando o tronco primitivo. A história do Ocidente, em certo sentido, é a própria crônica dessa luta que teve tréguas e momentos críticos. O mais forte materialmente usou do direito da força, como qualquer outro vitorioso. Mas não podia esquecer a raiz comum, o tronco inicial de onde nascera -e isso perturbou a consciência cristã ao longo de 2.000 anos.
E não por acaso no ano 2000, também um símbolo convencional no território dos símbolos, os dois ícones, o velho e o novo, se encontram frente a frente. Não vem ao caso discutir a sinceridade da mensagem que o papa deixou no muro, o pedido de perdão, formal e genérico, por tudo o que houve nestes 20 séculos.
Nenhum homem na face da Terra poderá duvidar da sinceridade pessoal daquele polonês, encurvado e trêmulo, que se inclinou diante daquelas pedras. E nelas colocou o seu nome assinando uma mensagem de humildade e paz, como se fosse um judeu a mais, que ali deposita sua prece ao Deus de Israel -o mesmo Deus dos cristãos.
Mas a história é um processo muitas vezes pendular. Assim como o judaísmo se abriu numa seita dissidente que com o tempo se tornou inimiga, o cristianismo também se fragmentou em seitas e subseitas que o agrediram com violência igual. Contrariando Marx, a história da humanidade só é uma luta de classes num segundo estágio. Na primeira etapa, a luta é pelo domínio de uma visão do mundo.
Visão do mundo não deixa de ser uma imagem. Deus criou o homem à sua imagem. A era que vivemos é a da imagem. Há uma convergência estranha no pórtico deste novo milênio, em que tudo se resume àquela imagem que, lá atrás, no gênesis de nossa civilização, criou a lenda de um Deus nos fazendo à imagem de si próprio.
Daí a importância da foto que, apesar de divulgada em todos os jornais do mundo, passou despercebida de seu caráter fundamental e civilizatório. Os dois símbolos maiores do Ocidente, o ícone branco e o ícone cor-de-pedra, frente a frente, 2.000 anos após tanta luta, tanta incompreensão, tanto medo e tanta dor.


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