São Paulo, terça, 31 de março de 1998

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Artista é o gene viajante

TOM ZÉ
especial para a Folha

Agora vamos para o gene viajante. Em certo momento o interesse de David Byrne pela arte latina complicou-se. Penso que ele compreendeu ter-se tornado um Fausto às avessas, que vendia o corpo em busca de uma alma.
Enquanto observava o vodu cubano, o candomblé baiano, o samba e a salsa, aprendia a convivência com aquelas pessoas de outra cultura, de outra classe social, que ele respeitava e levava para dentro de sua casa. Em 1990, eu mesmo, que não sou o protótipo do macho-branco-dominante, fui levado para lá, no Soho, rua Green, Nova York.
Para fazer as fotos de divulgação do Luaka Bop, contratou uns fotógrafos latinos que moravam em Nova York, rapazes pobres, com outro tipo de pele e de roupa, que até eu estranhei.
Saímos todos juntos, e na porta Byrne encontrou alguém conhecido. Pela cara do vizinho, era evidente que ele dizia consigo mesmo, em silêncio: "Que turma é essa que David Byrne está comboiando? Vão assaltar o supermercado? Vão à reunião do Grupo de Socorro a Cuba? Ou Byrne vai abrir uma lavanderia?". Parecia que Byrne pastoreava a própria diferença.
Numa visão geral da viagem genética de Byrne dentro da arte, eu gosto do exato momento em que ele já não era branco mas ainda não era negro.
Tendo saído de seu planeta e ainda sem a gravidade do planeta alvo, temos o Byrne peso zero. Tinha de seu a inteligência muito viva e independente. O resto era perda e futuro.
O homem sem face, tendo abdicado da cidadania branca, já não era um talking head, astro, famoso; e, não ainda um negro, era uma teimosa determinação, gene camicase.
Tal transmigração nos mostra hoje um tipo híbrido, de alma um tanto mulata, um tanto oriental, ainda em processo. Artista multimeios, ele é cantor, compositor, fotógrafo, faz cinema.
Arthur Clarke diz que uma infame determinação genética provocará o desaparecimento do negro pela clareação epidérmica. O branqueamento prevalecerá na miscigenação. Eu, por exemplo, pela cor da pele, já não posso me orgulhar tanto do sangue negro com que meus bisavós escravos me premiaram.
Se esse desastre alvejante acontecesse num salto futurológico, David Byrne poderia ser praticamente transformado em negro, para falar de sua cultura, de sua religião, de sua alma. Hoje ele já é "cavalo" de outra etnia.



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