São Paulo, quinta-feira, 31 de maio de 2001

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GASTRONOMIA

A comida contaminada de cada dia

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Curtindo esse livro excelente de Ariovaldo Franco, pude comprovar que está na comida o problema fundamental do nosso tempo. Não apenas a falta de calorias ou a fome, mas a qualidade do rango. Come-se cada vez pior. Comer é uma atividade reveladora da essência da civilização.
O leitor poderá se interessar pelo aspecto histórico do alimento e a maneira de comê-lo, desde os primórdios da caça ao fast food; mas o que mais chamou a atenção foi a não-sintonia entre o progresso material e o padrão alimentar. Isso porque ficou complicada a situação dos alimentos industrializados a partir do século 19.
A modernidade é também problemática do ponto de vista da nutrição. Grande indústria. Concentração de gentes nas cidades. A necessidade de conservar os alimentos e seu transporte. O enlatado. A pasteurização. E com isso a adulteração dos alimentos, cujas causas estão vinculadas ao sistema de produção de mercadorias.
Engels, em livro famoso sobre a classe operária na Inglaterra, de 1840, já denunciava o capitalismo como fenômeno gastrointestinal. De lá para cá vivemos sob o signo de um complexo gastrocapitalismo predador. Chá com folha de batata. Leite com água e giz de pó.
No final do século 19, a manteiga seria substituída pela margarina aditivada, marco da desvalorização das matérias-primas nos alimentos, os quais perderão suas virtudes nutritivas com a crescente maquinaria industrial.
O século 20 é o século da internacionalização dos alimentos, ou seja: a "macdonaldização" globalizada. Que é, no plano alimentar, a mistura de Taylor com Ford. A malandragem da "macdonaldização" consiste em "substituir a maior parte possível do trabalho assalariado pelo trabalho da própria clientela".
Fast food é sinônimo de "macdonaldização" planetária. Refeição desritualizada. Ocaso da conversa. Ausência de emoções. O tamanho é documento com produto big e super. O sanduíche viciado. Divórcio do garfo e da faca. Fingerfood. Desaparecimento da refeição familiar. Generaliza-se a pressa em comer, ou senão a comida solitária com forno microondas. O onanismo alimentar.
A agroindústria informatizada com bombardeios genéticos é uma espécie de Hiroshima na agricultura. Frangos biônicos, porcos obesos, vacina para aumentar a fome dos animais e aves cheias de antibióticos.
O gado alimentado com rações de animais de matadouros gera a doença da vaca louca, conhecida pelo nome medonho de "encefalopatia espongiforme bovina".
O engordamento precoce do gado. As toxinas. As doenças degenerativas. O câncer. Os produtos adoçantes na mesa. A esquizofrenia diet. A paranóia colesterol. O supermercado convertido em templo do consumo. A nutrição videogame. Os seus cardápios neoliberais. A desqualificação das matérias-primas na comida, a desnaturalização dos alimentos.
Ao mercantilismo industrial da alimentação acrescente-se a fúria oligopólica dos fabricantes de remédios, aí então o patético quadro da simbiose do supermercado com a drogaria estará completo e eloquente. É nesse contexto que a ciência médica não mais poderá se valer do alimento como fator de cura das enfermidades.
O século 21 acena com a perspectiva da comida envenenada.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda".



De Caçador a Gourmet: Uma História da Gastronomia
    
Autor: Ariovaldo Franco
Editora: Senac São Paulo, 2001
Quanto: R$ 30 (260 págs.)




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