São Paulo, sexta, 31 de julho de 1998

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FORNADA DO MILÊNIO
Nada acontece quando não acontece nada

GERALD THOMAS
em Nova York

"O que acontece, prezado senhor, quando não acontece nada? Será que acontece algo, senhor? Esse algo é palpável? É palpável, prezado senhor, esse nada?". Esse desabafo brilhante, poético, filosófico, foi escrito por Federico García Lorca, um pouco antes do início da Guerra Civil Espanhola.
Esse "nada" a que ele se refere tem a ver com muitas coisas, entre elas o vácuo sofrido por um artista logo antes e depois de uma explosão criativa. Mas esse "nada" é também o espanto do artista ao verificar que seu país, seu povo, está encalhado e com sua identidade enfraquecida, descrente, cegada por décadas de perguntas sem respostas.
Não, esse "nada" de Lorca evidentemente não é palpável. Mas eu poderia usá-lo para descrever a sensação que tive ao desembarcar no Brasil, depois de nove meses de ausência. No avião eu lia sobre os remédios falsificados, o "escândalo" do momento.
Como com tantos outros escândalos do passado, esquecidos ou meramente transformados numa notinha nas páginas de crimes ou acidentes sangrentos, eu chacoalhei a cabeça e soltei um suspiro, como todos os brasileiros, murmurando para os meus botões, "como é que pode?"
E, assim como grande parte dos brasileiros, não acreditei em uma única declaração das autoridades, não confiei na proteção do Estado. Assim como eles, eu desconfio de tudo e de todos, certo (ou quase certo) de que nesse país o crime compensa e a impunidade...
É incrivelmente comum algum brasileiro -qualquer tipo de brasileiro- se referir ao seu país como sendo um lugar onde nada muda.
Em cada telefonema com alguém do Brasil, eu sempre me vejo perguntando, um tanto ansiosamente: "Como vão as coisas por aí? Como estão as ruas, os restaurantes? E o público de teatro? Tem havido público? E as lojas, os prédios, quais são as novidades?". Geralmente há um silêncio no outro lado da linha. "Tá tudo igual...Tá tudo a mesma coisa."
"Como assim, a mesma coisa?", eu insisto, desconfiado de que o brasileiro raramente presta atenção nas mudanças ou, pelo menos, ri delas pois sabe que são superficiais, cosméticas.
"Tá a mesma bosta... Tudo igual", me dizia o motorista de táxi que me trouxe do aeroporto pela inacreditável quantia de R$ 47. "Como assim, moço? Por que essa corrida me custa R$ 47 nesse carro ruim e velho, se em Nova York ela custa US$ 35, em Berlim somente US$ 22, sendo que, em NY, o táxi é confortável, hidramático, automático e o motorista ganha bem... E em Berlim são (quase) todos Mercedes... E, naqueles lugares, o seguro -caso haja um acidente- é altíssimo e o hospital será incrivelmente moderno e equipado, sem remédios falsificados, sem sangue contaminado."
"Se nós tivermos um acidente aqui na Dutra, para qual hospital nos levariam? E quanto tempo a ambulância demoraria para chegar?"
O motorista não respondia às minhas perguntas. Limitava-se a dizer que o custo de vida em São Paulo estava inacreditavelmente alto. E, passando por várias favelas, ou melhor, aglomerados subumanos, fomos entrando na cidade.
Não sei muito bem por que, mas, depois de tanto tempo longe, sempre espero ver novos arranha-céus ou alguma construção monumental que demonstre mudanças e que indique, de alguma maneira, que o orgulho da cidade tenha aumentado. Nada. Estava tudo igual.
Ainda os postes, os milhares de postes com seus fios horrorosos, impediam que se enxergasse qualquer coisa além deles. E olha que estamos na área nobre da cidade. É inacreditável que São Paulo ainda não tenha enterrado seus fios.
E as calçadas... Tudo igual, desformes, esburacadas. Os postes e seus fios não deixam que se veja nitidamente nenhuma fachada. As calçadas evitam que se caminhe a pé. Nas vitrines, cópias. Tudo cópia do Primeiro Mundo. Cópias malfeitas. Meu Deus! (Eu consegui ver o preço de um jeans), que cópias caras.
Será que o "nada" do Lorca é esse estágio em que se aspira a ser um outro, copiar as coisas do outro, abocanhar a sociedade do outro, esquecer até o passado mais recente, cultivar, endeusar o mínimo denominador comum (ou o baixo nível mesmo como Xuxa, as novelas)? Será?
É engraçado, mas as cidades do Primeiro Mundo iluminam seus grandes prédios, pontes, torres, marcos enfim, de uma nova era ou de alguma revolução estética, tecnológica, alguma criação. São Paulo ilumina seus apart-hotéis e parece querer comemorar esses blocos da arquitetura mais medíocre, mais barata e ordinária que existe.
"E os telefones melhoraram?", pergunto assim que faço o check-in no hotel. "Não, senhor... Está tudo como estava. Quer dizer, há umas linhas digitais por aí, mas a fila para conseguir um telefone ainda é enorme", responde o recepcionista, com o mesmo sorriso amarelo que já acompanha tantas gerações quando se referem ao seu país.
E por que tudo tão caro? Por que uma refeição custa pelo menos o dobro do que em Nova York? Não falo de comidas importadas, falo de um simples filé de peixe grelhado.
E por que os garçons se arrastam pelos lugares, por que aqueles que nos servem estão sempre de mau humor? Por que o carro brasileiro continua não competitivo com os importados? E por que custa o dobro?
Onde residem os segredos que poderiam melhorar a qualidade de vida de todas as camadas, desde a reforma agrária até o desaparecimento dos fios elétricos? Todas essas perguntas têm respostas óbvias e tristes. Qualquer estudante de economia já as tem em sua tese, qualquer político as possui na ponta da língua.
O fato é que eu desembarquei nessa cidade que parece querer representar o estilo de teatro burlesco, farsesco às avessas, onde uma falsa humildade substitui o exagero das grandes cidades do mundo.
Essa falsa humildade torna essa peça chamada "São Paulo do Brasil" numa encenação triste. Mas ainda mais triste é constatar que, aqui nesse país, a pergunta de Lorca parece ter uma resposta: nada acontece quando não acontece nada.

E-mail: geraldthomas@uol.com.br



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