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FORNADA DO MILÊNIO
Nada acontece quando não acontece nada
GERALD THOMAS
em Nova York
"O que acontece, prezado senhor, quando não acontece
nada? Será que acontece algo,
senhor? Esse algo é palpável? É
palpável, prezado senhor, esse
nada?". Esse desabafo brilhante, poético, filosófico, foi escrito por Federico García Lorca,
um pouco antes do início da
Guerra Civil Espanhola.
Esse "nada" a que ele se refere tem a ver com muitas coisas,
entre elas o vácuo sofrido por
um artista logo antes e depois
de uma explosão criativa. Mas
esse "nada" é também o espanto do artista ao verificar que
seu país, seu povo, está encalhado e com sua identidade
enfraquecida, descrente, cegada por décadas de perguntas
sem respostas.
Não, esse "nada" de Lorca
evidentemente não é palpável.
Mas eu poderia usá-lo para
descrever a sensação que tive
ao desembarcar no Brasil, depois de nove meses de ausência. No avião eu lia sobre os
remédios falsificados, o "escândalo" do momento.
Como com tantos outros escândalos do passado, esquecidos ou meramente transformados numa notinha nas páginas de crimes ou acidentes
sangrentos, eu chacoalhei a
cabeça e soltei um suspiro, como todos os brasileiros, murmurando para os meus botões,
"como é que pode?"
E, assim como grande parte
dos brasileiros, não acreditei
em uma única declaração das
autoridades, não confiei na
proteção do Estado. Assim como eles, eu desconfio de tudo e
de todos, certo (ou quase certo)
de que nesse país o crime compensa e a impunidade...
É incrivelmente comum algum brasileiro -qualquer tipo de brasileiro- se referir ao
seu país como sendo um lugar
onde nada muda.
Em cada telefonema com alguém do Brasil, eu sempre me
vejo perguntando, um tanto
ansiosamente: "Como vão as
coisas por aí? Como estão as
ruas, os restaurantes? E o público de teatro? Tem havido
público? E as lojas, os prédios,
quais são as novidades?". Geralmente há um silêncio no
outro lado da linha. "Tá tudo
igual...Tá tudo a mesma coisa."
"Como assim, a mesma coisa?", eu insisto, desconfiado de
que o brasileiro raramente
presta atenção nas mudanças
ou, pelo menos, ri delas pois
sabe que são superficiais, cosméticas.
"Tá a mesma bosta... Tudo
igual", me dizia o motorista de
táxi que me trouxe do aeroporto pela inacreditável quantia
de R$ 47. "Como assim, moço?
Por que essa corrida me custa
R$ 47 nesse carro ruim e velho,
se em Nova York ela custa US$
35, em Berlim somente US$ 22,
sendo que, em NY, o táxi é
confortável, hidramático, automático e o motorista ganha
bem... E em Berlim são (quase)
todos Mercedes... E, naqueles
lugares, o seguro -caso haja
um acidente- é altíssimo e o
hospital será incrivelmente
moderno e equipado, sem remédios falsificados, sem sangue contaminado."
"Se nós tivermos um acidente
aqui na Dutra, para qual hospital nos levariam? E quanto
tempo a ambulância demoraria para chegar?"
O motorista não respondia
às minhas perguntas. Limitava-se a dizer que o custo de vida em São Paulo estava inacreditavelmente alto. E, passando por várias favelas, ou
melhor, aglomerados subumanos, fomos entrando na cidade.
Não sei muito bem por que,
mas, depois de tanto tempo
longe, sempre espero ver novos
arranha-céus ou alguma construção monumental que demonstre mudanças e que indique, de alguma maneira, que o
orgulho da cidade tenha aumentado. Nada. Estava tudo
igual.
Ainda os postes, os milhares
de postes com seus fios horrorosos, impediam que se enxergasse qualquer coisa além deles. E olha que estamos na área
nobre da cidade. É inacreditável que São Paulo ainda não
tenha enterrado seus fios.
E as calçadas... Tudo igual,
desformes, esburacadas. Os
postes e seus fios não deixam
que se veja nitidamente nenhuma fachada. As calçadas
evitam que se caminhe a pé.
Nas vitrines, cópias. Tudo cópia do Primeiro Mundo. Cópias malfeitas. Meu Deus! (Eu
consegui ver o preço de um
jeans), que cópias caras.
Será que o "nada" do Lorca é
esse estágio em que se aspira a
ser um outro, copiar as coisas
do outro, abocanhar a sociedade do outro, esquecer até o
passado mais recente, cultivar,
endeusar o mínimo denominador comum (ou o baixo nível mesmo como Xuxa, as novelas)? Será?
É engraçado, mas as cidades
do Primeiro Mundo iluminam
seus grandes prédios, pontes,
torres, marcos enfim, de uma
nova era ou de alguma revolução estética, tecnológica, alguma criação. São Paulo ilumina
seus apart-hotéis e parece querer comemorar esses blocos da
arquitetura mais medíocre,
mais barata e ordinária que
existe.
"E os telefones melhoraram?", pergunto assim que faço o check-in no hotel. "Não,
senhor... Está tudo como estava. Quer dizer, há umas linhas
digitais por aí, mas a fila para
conseguir um telefone ainda é
enorme", responde o recepcionista, com o mesmo sorriso
amarelo que já acompanha
tantas gerações quando se referem ao seu país.
E por que tudo tão caro? Por
que uma refeição custa pelo
menos o dobro do que em Nova York? Não falo de comidas
importadas, falo de um simples filé de peixe grelhado.
E por que os garçons se arrastam pelos lugares, por que
aqueles que nos servem estão
sempre de mau humor? Por
que o carro brasileiro continua
não competitivo com os importados? E por que custa o dobro?
Onde residem os segredos
que poderiam melhorar a qualidade de vida de todas as camadas, desde a reforma agrária até o desaparecimento dos
fios elétricos? Todas essas perguntas têm respostas óbvias e
tristes. Qualquer estudante de
economia já as tem em sua tese, qualquer político as possui
na ponta da língua.
O fato é que eu desembarquei nessa cidade que parece
querer representar o estilo de
teatro burlesco, farsesco às
avessas, onde uma falsa humildade substitui o exagero
das grandes cidades do mundo.
Essa falsa humildade torna
essa peça chamada "São Paulo
do Brasil" numa encenação
triste. Mas ainda mais triste é
constatar que, aqui nesse país,
a pergunta de Lorca parece ter
uma resposta: nada acontece
quando não acontece nada.
E-mail: geraldthomas@uol.com.br
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