São Paulo, sexta, 31 de julho de 1998

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TEATRO - CRÍTICAS
Latorraca brinca em farsa engenhosa

NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

Talvez o autor, o jovem e talentoso Renato Modesto, nem saiba de J.B. Priestley (embora tudo indique que sim, por tratar-se de alguém claramente interessado na dramaturgia de língua inglesa), mas "O Martelo" remete a "An Inspector Calls".
É a mesma sinuosidade de "thriller", também a mesma situação, até o mesmo "inspetor". E Modesto sabe escrever para teatro. Escreveu em "O Martelo" o que se chama "well-made play", peça bem-feita, no gênero característico de Priestley.
As cenas são cuidadosamente arquitetadas e desenvolvidas, a preocupação com a tensão é central, a trama é carregada de surpresas e reviravoltas, enfim, a "carpintaria", como se diz, não poderia ser mais consciente. Ainda assim, "O Martelo", escrito há seis anos, bem merecia ser recomposto.
Suas melhores passagens, como a "desconstrução" da personalidade de Pedro, chocam frontalmente com o realismo canhestro das primeiras cenas -e depois com o esforço de voltar à verossimilhança, no final. Ainda que seja esse o propósito do dramaturgo, esse choque, o resultado em cena pede a depuração.
Sinopse: Pedro (Edílson Botelho) e Maria (Bárbara Bruno), casal traumatizado por um aborto que tornou a mulher estéril, é avisado por um inspetor de polícia (Ney Latorraca) que uma investigação de assassinatos em série leva a Pedro, como suspeito principal. A partir daí começam as surpresas e a tensão citadas.
É engenhosa, mas, a exemplo de "É o Fim do Mundo", a peça de Modesto produzida em 96, funciona mais quando embarca de vez na farsa, em lugar de perder-se na ordenação ou nas frases de tese -como "a realidade não é o que é verdadeiro: a realidade é o que as pessoas pensam".
(A frase ecoa um tema de hoje, a dissolução da identidade na representação social, mas que só se realiza parcialmente, como arte, na peça. Em tema semelhante, tomado em comparação, um romance como "Teatro", de Bernardo Carvalho, vai muito além.)
Para os seus 35 anos de carreira, o ator Ney Latorraca talvez merecesse um personagem em que pudesse expor, menos a conhecida, envolvente interpretação farsesca -e mais as diversas faces de seu talento de ator.
Como o inspetor ou como Pedro, na esquizofrenia cômica que é o melhor de "O Martelo", o que se tem é Latorraca tirando risadas com esgares, com risadas esdrúxulas dele mesmo, com macetes, enfim. Alguns deles já bem marcados, até em tipos de televisão, no caso, de "TV Pirata".
O ator brinca com seu próprio personagem público, como que parodiando a si mesmo -e comemorando, de alguma maneira, a carreira. Em tal caminho, tem ótimas cenas, apoiado nos altos do texto, no que este tem de mais hilariante e "absurdo".
São cenas em que o público, como é próprio dos grandes comediantes, fica na sua mão. O ator poderia parar, improvisar, conversar e -é o que parece- não perderia o envolvimento e o riso desenfreado do público. Mas Ney Latorraca podia mais, certamente, nesta comemoração.
Edílson Botelho e Bárbara Bruno, se não chegam a acompanhar as estripulias farsescas do protagonista, estão bem -o primeiro com um acento maior na caricatura, a segunda com maior aprofundamento emocional. São eles que se obrigam mais, de todo modo, a carregar as cenas de gordura realista em "O Martelo".
No cenário de JC Serroni, o melhor -e ainda não dominado pelo elenco, na estréia- são as 11 portas que se amontoam em cena, como que para acentuar grotescamente a farsa.


Peça: O Martelo
Direção: Aderbal Freire-Filho
Quando: qui a sáb, às 21h, dom, às 20h
Onde: teatro Ruth Escobar (r. dos Ingleses, 209, tel. 011/289-2358)
Quanto: de R$ 20 a R$ 30
Patrocinador: Bradesco Previdência



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