São Paulo, Sábado, 31 de Julho de 1999
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MÚSICA
Série "Deluxe Edition" traz três títulos de feras do selo, e a Abril Music prepara mais três lançamentos
Blues da Alligator (re)estréia no Brasil

EDSON FRANCO
Editor de Veículos

Dessa vez, parece que vai. Com seus títulos distribuídos agora pela Abril Music, a gravadora especializada em blues Alligator faz a sua terceira tentativa de fixação em território nacional.
Os três primeiros títulos que a aliança entre Abril e Alligator coloca no mercado, todos da série "Deluxe Edition", dão bons indícios daquilo que pode estar à disposição dos brasileiros.
São compilações de luxo que trazem as obras de Hound Dog Taylor (cantor e guitarrista dono do primeiro disco produzido pela Alligator, lançado em 1971), a cantora e pianista Katie Webster e o cantor e gaiteiro William Clarke.
Se a aliança vingar, o blueseiro nacional pode se deliciar com o eclético catálogo da Alligator. Há obras que transitam pela tradição, outras que fincam o pé na contemporaneidade e até aquelas que fazem o blues ir adiante.
De sua sala na sede da gravadora instalada em Chicago, Bruce Iglauer, fundador e presidente da Alligator, deu a seguinte entrevista por telefone à Folha.

Folha - Sua paixão por música vem do berço?
Bruce Iglauer -
Não. Meus pais gostavam de música, mas não sabiam tocar nenhum instrumento. Eles nasceram antes dos anos 20 e gostavam de baladas, grupos de swing e, principalmente, dos musicais da Broadway. Cresci ouvindo coisas como "O Rei e Eu". O blues não entrava em casa.

Folha - Quando seu gosto musical ficou independente?
Iglauer -
Na adolescência, eu comecei a me interessar pela música folk. E foi durante um festival desse tipo de música que eu ouvi o blues pela primeira vez, em 1966.

Folha - Foi em um show do violonista de country-blues Freddie McDowell. Quais elementos fizeram você gostar daquela música?
Iglauer -
A clareza de propósitos é um deles. Tudo era muito direto, intenso. Tudo parecia muito mais real do que qualquer outra coisa que eu já havia ouvido.

Folha - Você era um universitário em meados dos anos 60. Como você conseguiu superar a supremacia do rock'n'roll para ouvir o blues?
Iglauer -
No começo, o rock'n'roll tinha muitos aspectos do blues. Na minha opinião, Little Richard é um grande cantor de blues, por exemplo. Mas, no meio dos anos 60, o rock começou a se tornar uma forma de arte baseada no excesso de produção.
Acredito que, desde o início, o rock sente a falta da densidade do blues. Acho que o rock é o lado divertido do blues. A intensidade e a profundidade de emoção não estavam no rock.

Folha - Sua primeira ligação profissional com música foi no balcão da loja de discos e gravadora Delmark, certo?
Iglauer -
Sim. No começo, eu apenas empacotava coisas, cuidava do estoque. Enfim, nada glamouroso nem musical.

Folha - Bob Koester (fundador da Delmark) tem fama de briguento. Como era a relação entre vocês?
Iglauer -
Eu amo Bob, mas nós brigávamos o tempo todo. Nós temos gênios fortes. Nós ficamos felizes quando nos reencontramos, mas continuamos brigando.

Folha - O fato de você ter descoberto o guitarrista Hound Dog Taylor parece ter sido a gota d'água responsável pela sua saída da Delmark. Por que Koester não quis gravar o disco de Taylor?
Iglauer0-
Acho que houve duas boas e compreensíveis razões. A primeira é que Koester só havia ouvido Hound Dog Taylor participando de jam sessions e nunca com sua própria banda. E, tocando de improviso com outros músicos, Taylor era um desastre. Ele só sabia tocar as músicas dele.
A primeira vez que vi Taylor tocar foi num clube na zona oeste de Chicago, em 1969. Ele estava participando de uma jam. Eu notava que os músicos permitiam dividir o palco com ele só por respeito. Depois, eu vi Taylor com sua banda e entendi o significado de sua música. Koester não teve essa chance.
A outra razão que levou Koester a vetar a gravação é o fato de que eu queria produzir o disco, e ele achava que eu não tinha experiência suficiente para isso. Apesar de achar que ele estava errado, eu consigo entendê-lo. Afinal, toda experiência que eu tinha era de ficar seguindo Bob pelo estúdio.

Folha - Aí você recebeu uma herança de US$ 2.500 e investiu tudo na produção do disco de Hound Dog Taylor. Foi difícil assumir o comando no estúdio?
Iglauer -
Além de conhecer as músicas muito bem, eu usei o mesmo estúdio que Koester costumava alugar. Eu sabia como Taylor gostava que as músicas soassem.
Em resumo, foi quase o registro de um show ao vivo. Foram apenas duas sessões de gravação, com não mais de seis horas cada.

Folha - Sua separação da Delmark foi amigável?
Iglauer -
Bob disse para mim em 1972: "Você tem de tomar uma decisão. Você está usando a estrutura e o telefone da Delmark para seu próprio negócio. Você não pode servir a dois mestres". Ele estava certo, e eu resolvi sair.

Folha - No começo, a Alligator era um negócio arriscado, era preciso vender um disco para bancar a produção do seguinte.
Iglauer -
Eu vou além. A Alligator foi um negócio de risco nos primeiros 15 anos. O tempo todo eu estava com medo de quebrar. Não tinha reservas de dinheiro e ficava sempre tentando lembrar qual credor eu já havia pago e quem eu ainda deveria pagar. E estava sempre atrasado com os pagamentos.

Folha - Como foi conciliar o amante de blues com o homem de negócios?
Iglauer -
Tive de aprender a lidar com as finanças. Desde o início, eu sabia que deveria ser agressivo no que diz respeito à promoção dos meus produtos.
Eu conhecia minha platéia. Eram pessoas como eu, que compravam os mesmos discos e ouviam rádios parecidas. Por isso, eu passei a visitar várias rádios. Na época, eu era o dono de gravadora de blues que mais investia na produção de cópias promocionais para as rádios.
Naquele tempo, os DJs podiam escolher o que tocar. Por isso, a Alligator nasceu na época certa, no lugar certo e com o disco certo.

Folha - A primeira grande conquista da Alligator foi ter trazido a cantora Koko Taylor em 1975?
Iglauer -
Não. Quando Koko entrou para a Alligator, ela estava praticamente esquecida, apesar de ter feito muito sucesso em meados dos anos 60. Foi só com o tempo que o primeiro disco que ela gravou conosco passou a vender bem. Hoje, Koko é uma das nossas líderes de vendas.

Folha - Então a coisa começou a melhorar três anos depois, com a chegada de Albert Collins?
Iglauer -
Albert foi uma história totalmente diferente. Ele já havia gravado para vários selos desde os anos 60 e ainda tinha uma reputação decorrente desses discos.
Além disso, ele era um grande guitarrista e se mantinha no topo, tocando em lugares como o Fillmore East e ao lado de bandas como o Canned Heat.
Mesmo assim, quando lançamos "Ice Pickin'", eu estava com medo. Achava que Albert já estivesse esquecido, mas o disco foi um grande incentivo para a nossa gravadora. Criou uma reputação que não tínhamos e fez com que a gente adquirisse alcance nacional.

Folha - A maioridade da gravadora veio em 1984, quando o guitarrista Johnny Winter foi contratado.
Iglauer -
Ele despertou a atenção das rádios de rock para o selo. Foi uma época especialmente fértil para os músicos que transitavam entre o rock e o blues. Com os discos dele, nós continuamos independentes, mas passamos a ser tratados como gente grande.

Folha - Você já chegou a gravar coisas de que não gostasse muito, mas que tivesse apelo comercial?
Iglauer -
Eu espero que todos os meus discos tenham potencial de vendas. Em geral, eu procuro gravar só aquilo que me encanta, afinal a visão musical da Alligator vem totalmente da minha cabeça.
Mas houve um artista que gravou um ótimo primeiro disco comigo. No segundo trabalho, o artista resolveu assinar a produção.
Concedi, pois queria dar espaço para a criatividade dele. Não gostei do resultado, mas lancei o trabalho assim mesmo. Esse é o único disco da Alligator do qual eu não sou um fã incondicional.

Folha - O guitarrista brasileiro Nuno Mindelis lembrou que você ouviu o disco "Texas Bound" e disse que Nuno é um grande guitarrista, mas precisa de um vocalista. Não há como se dar bem no blues sem uma boa voz?
Iglauer -
Acho possível se dar bem no blues-rock, porque, nesse tipo de música, a guitarra é o mais importante. Mas no blues de verdade você deve ter uma voz capaz de contar uma história.
Para mim, Albert King não tinha uma boa voz, mas era um grande contador de histórias. Quando ele abria a boca, toda a platéia tinha de parar para ouvir.

Folha - Alguns nomes da Alligator, como Michael Hill e Kinsey Report, mostram novos caminhos para o blues. Na sua opinião, qual é o futuro do estilo?
Iglauer -
O blues sempre vai ser uma música que descreve a vida real. Será sempre uma música cantada na primeira pessoa. Uma música que gera tensão e alívio. É assim que o blues funciona. Ele faz você se sentir bem após ter feito você se sentir mal.
Em termos estruturais, muitos roqueiros pensam poder tocar o blues porque a combinação de acordes é muito simples. Mas eles esquecem que a profundidade de sentimentos é muito complexa.
Acredito que para o blues continuar evoluindo é preciso que sejam incorporadas novas estruturas, novos ritmos, as letras devem ser contemporâneas.
Muitos músicos revisitam os mesmos clássicos. São belas músicas, mas estão relacionadas com o passado. Para o blues sobreviver, ele precisa de letras atuais.

Folha - Você começou sozinho, distribuindo discos na caçamba da sua picape. Hoje, 22 pessoas trabalham para a Alligator. Você gostaria de ser um de seus funcionários?
Iglauer -
Eles trabalham para um cara agitado e que às vezes pode agir com violência (risos). Aqui há pessoas que ouvem outros tipos de música, mas que gostam de trabalhar com o blues.
Ofereço aos meus funcionários bons seguros, pago um salário justo -não é excepcional, mas é justo- e eles fazem parte de um ambiente em que podem exercitar bastante a criatividade.


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