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MÚSICA
Série "Deluxe Edition" traz três títulos de feras do selo, e a Abril Music prepara mais três lançamentos
Blues da Alligator (re)estréia no Brasil
EDSON FRANCO
Editor de Veículos
Dessa vez, parece que vai. Com
seus títulos distribuídos agora pela Abril Music, a gravadora especializada em blues Alligator faz a
sua terceira tentativa de fixação
em território nacional.
Os três primeiros títulos que a
aliança entre Abril e Alligator coloca no mercado, todos da série
"Deluxe Edition", dão bons indícios daquilo que pode estar à disposição dos brasileiros.
São compilações de luxo que
trazem as obras de Hound Dog
Taylor (cantor e guitarrista dono
do primeiro disco produzido pela
Alligator, lançado em 1971), a cantora e pianista Katie Webster e o
cantor e gaiteiro William Clarke.
Se a aliança vingar, o blueseiro
nacional pode se deliciar com o
eclético catálogo da Alligator. Há
obras que transitam pela tradição,
outras que fincam o pé na contemporaneidade e até aquelas que
fazem o blues ir adiante.
De sua sala na sede da gravadora instalada em Chicago, Bruce
Iglauer, fundador e presidente da
Alligator, deu a seguinte entrevista por telefone à Folha.
Folha - Sua paixão por música
vem do berço?
Bruce Iglauer - Não. Meus pais
gostavam de música, mas não sabiam tocar nenhum instrumento.
Eles nasceram antes dos anos 20 e
gostavam de baladas, grupos de
swing e, principalmente, dos musicais da Broadway. Cresci ouvindo coisas como "O Rei e Eu". O
blues não entrava em casa.
Folha - Quando seu gosto musical ficou independente?
Iglauer - Na adolescência, eu
comecei a me interessar pela música folk. E foi durante um festival
desse tipo de música que eu ouvi o
blues pela primeira vez, em 1966.
Folha - Foi em um show do
violonista de country-blues
Freddie McDowell. Quais elementos fizeram você gostar daquela música?
Iglauer - A clareza de propósitos é um deles. Tudo era muito direto, intenso. Tudo parecia muito
mais real do que qualquer outra
coisa que eu já havia ouvido.
Folha - Você era um universitário em meados dos anos 60.
Como você conseguiu superar a
supremacia do rock'n'roll para
ouvir o blues?
Iglauer - No começo, o
rock'n'roll tinha muitos aspectos
do blues. Na minha opinião, Little
Richard é um grande cantor de
blues, por exemplo. Mas, no meio
dos anos 60, o rock começou a se
tornar uma forma de arte baseada
no excesso de produção.
Acredito que, desde o início, o
rock sente a falta da densidade do
blues. Acho que o rock é o lado divertido do blues. A intensidade e a
profundidade de emoção não estavam no rock.
Folha - Sua primeira ligação
profissional com música foi no
balcão da loja de discos e gravadora Delmark, certo?
Iglauer - Sim. No começo, eu
apenas empacotava coisas, cuidava do estoque. Enfim, nada glamouroso nem musical.
Folha - Bob Koester (fundador
da Delmark) tem fama de briguento. Como era a relação entre vocês?
Iglauer - Eu amo Bob, mas nós
brigávamos o tempo todo. Nós temos gênios fortes. Nós ficamos felizes quando nos reencontramos,
mas continuamos brigando.
Folha - O fato de você ter descoberto o guitarrista Hound
Dog Taylor parece ter sido a gota d'água responsável pela sua
saída da Delmark. Por que
Koester não
quis gravar o
disco de Taylor?
Iglauer0-Acho que houve duas boas e
compreensíveis razões. A
primeira é que
Koester só havia ouvido
Hound Dog
Taylor participando de jam sessions e nunca
com sua própria banda. E, tocando de improviso com outros músicos, Taylor era um desastre. Ele
só sabia tocar as músicas dele.
A primeira vez que vi Taylor tocar foi num clube na zona oeste de
Chicago, em 1969. Ele estava participando de uma jam. Eu notava
que os músicos permitiam dividir
o palco com ele
só por respeito.
Depois, eu vi
Taylor com sua
banda e entendi o significado
de sua música.
Koester não teve essa chance.
A outra razão
que levou
Koester a vetar
a gravação é o
fato de que eu
queria produzir o disco, e ele
achava que eu não tinha experiência suficiente para isso. Apesar de
achar que ele estava errado, eu
consigo entendê-lo. Afinal, toda
experiência que eu tinha era de ficar seguindo Bob pelo estúdio.
Folha - Aí você recebeu uma
herança de US$ 2.500 e investiu
tudo na produção do disco de
Hound Dog Taylor. Foi difícil assumir o comando no estúdio?
Iglauer - Além de conhecer as
músicas muito
bem, eu usei o
mesmo estúdio que Koester costumava
alugar. Eu sabia como Taylor gostava que
as músicas
soassem.
Em resumo,
foi quase o registro de um
show ao vivo.
Foram apenas
duas sessões de
gravação, com não mais de seis
horas cada.
Folha - Sua separação da Delmark foi amigável?
Iglauer - Bob disse para mim
em 1972: "Você tem de tomar
uma decisão. Você está usando a
estrutura e o telefone da Delmark
para seu próprio negócio. Você
não pode servir a dois mestres".
Ele estava certo, e eu resolvi sair.
Folha - No começo, a Alligator
era um negócio arriscado, era
preciso vender um disco para
bancar a produção do seguinte.
Iglauer - Eu vou além. A Alligator foi um negócio de risco nos
primeiros 15 anos. O tempo todo
eu estava com medo de quebrar.
Não tinha reservas de dinheiro e ficava
sempre tentando lembrar
qual credor eu
já havia pago e
quem eu ainda
deveria pagar.
E estava sempre atrasado
com os pagamentos.
Folha - Como foi conciliar o amante
de blues com o homem de negócios?
Iglauer - Tive de aprender a lidar com as finanças. Desde o início, eu sabia que deveria ser agressivo no que diz respeito à promoção dos meus produtos.
Eu conhecia minha platéia.
Eram pessoas como eu, que compravam os mesmos discos e ouviam rádios
parecidas. Por
isso, eu passei a
visitar várias
rádios. Na época, eu era o dono de gravadora de blues que
mais investia
na produção
de cópias promocionais para as rádios.
Naquele
tempo, os DJs
podiam escolher o que tocar. Por isso, a Alligator nasceu na época certa, no lugar certo e com o disco certo.
Folha - A primeira grande conquista da Alligator foi ter trazido a cantora Koko Taylor em
1975?
Iglauer -Não. Quando Koko entrou para a Alligator, ela estava
praticamente esquecida, apesar
de ter feito muito sucesso em
meados dos anos 60. Foi só com o
tempo que o
primeiro disco
que ela gravou
conosco passou a vender
bem. Hoje, Koko é uma das
nossas líderes
de vendas.
Folha - Então a coisa começou a melhorar três
anos depois,
com a chegada de Albert
Collins?
Iglauer - Albert foi uma história
totalmente diferente. Ele já havia
gravado para vários selos desde os
anos 60 e ainda tinha uma reputação decorrente desses discos.
Além disso, ele era um grande
guitarrista e se mantinha no topo,
tocando em lugares como o Fillmore East e ao lado de bandas como o Canned Heat.
Mesmo assim, quando lançamos "Ice Pickin'", eu estava com
medo. Achava que Albert já estivesse esquecido, mas o disco foi
um grande incentivo para a nossa
gravadora. Criou uma reputação
que não tínhamos e fez com que a
gente adquirisse alcance nacional.
Folha - A maioridade da gravadora veio em 1984, quando o
guitarrista Johnny Winter foi
contratado.
Iglauer - Ele despertou a atenção das rádios de rock para o selo.
Foi uma época especialmente fértil para os músicos que transitavam entre o rock e o blues. Com
os discos dele, nós continuamos
independentes, mas passamos a
ser tratados como gente grande.
Folha - Você já chegou a gravar coisas de que não gostasse
muito, mas que tivesse apelo
comercial?
Iglauer - Eu espero que todos os
meus discos tenham potencial de
vendas. Em geral, eu procuro gravar só aquilo que me encanta, afinal a visão musical da Alligator
vem totalmente da minha cabeça.
Mas houve um artista que gravou um ótimo primeiro disco comigo. No segundo trabalho, o artista resolveu assinar a produção.
Concedi, pois queria dar espaço
para a criatividade dele. Não gostei do resultado, mas lancei o trabalho assim mesmo. Esse é o único disco da Alligator do qual eu
não sou um fã incondicional.
Folha - O guitarrista brasileiro
Nuno Mindelis lembrou que você ouviu o disco "Texas Bound"
e disse que Nuno é um grande
guitarrista, mas precisa de um
vocalista. Não há como se dar
bem no blues sem uma boa voz?
Iglauer - Acho possível se dar
bem no blues-rock, porque, nesse
tipo de música, a guitarra é o mais
importante. Mas no blues de verdade você deve ter uma voz capaz
de contar uma história.
Para mim, Albert King não tinha uma boa voz, mas era um
grande contador de histórias.
Quando ele abria a boca, toda a
platéia tinha de parar para ouvir.
Folha - Alguns nomes da Alligator, como Michael Hill e Kinsey Report, mostram novos caminhos para o blues. Na sua opinião, qual é o futuro do estilo?
Iglauer - O blues sempre vai ser
uma música que descreve a vida
real. Será sempre uma música
cantada na primeira pessoa. Uma
música que gera tensão e alívio. É
assim que o blues funciona. Ele
faz você se sentir bem após ter feito você se sentir mal.
Em termos estruturais, muitos
roqueiros pensam poder tocar o
blues porque a combinação de
acordes é muito simples. Mas eles
esquecem que a profundidade de
sentimentos é muito complexa.
Acredito que para o blues continuar evoluindo é preciso que sejam incorporadas novas estruturas, novos ritmos, as letras devem
ser contemporâneas.
Muitos músicos revisitam os
mesmos clássicos. São belas músicas, mas estão relacionadas com
o passado. Para o blues sobreviver, ele precisa de letras atuais.
Folha - Você começou sozinho,
distribuindo discos na caçamba
da sua picape. Hoje, 22 pessoas
trabalham para a Alligator. Você
gostaria de ser um de seus funcionários?
Iglauer - Eles trabalham para
um cara agitado e que às vezes pode agir com violência (risos).
Aqui há pessoas que ouvem outros tipos de música, mas que gostam de trabalhar com o blues.
Ofereço aos meus funcionários
bons seguros, pago um salário
justo -não é excepcional, mas é
justo- e eles fazem parte de um
ambiente em que podem exercitar bastante a criatividade.
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