São Paulo, sexta-feira, 31 de agosto de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE

Enigma fica escondido em emaranhado de variáveis

DA "SALON"

"Amnésia" é daqueles filmes em que quase todas as cenas assumem um significado diferente quando você descobre para onde o filme estava se dirigindo. Ou será que a expressão deveria ser "onde o filme esteve"?
O enigma de "Amnésia" não pode ser resolvido com uma simples explicação. Suas charadas se emaranham em variáveis atordoantes: um narrador pouco confiável; um mecanismo de auto-referência pós-moderno; meditações temáticas sobre a memória, o conhecimento e o sofrimento; e pistas e indicações enganosas.
Somos informados de que Leonard (Guy Pearce) mata o assassino de sua mulher na primeira cena. O enredo se desenrola rumo ao passado a partir dali, em porções de mais ou menos cinco minutos de duração, que nos permitem ver como ele descobriu o assassino, terminando com o começo da história cronologicamente.
Na verdade, essa apresentação do roteiro é uma simplificação da estrutura. Nolan fez algo mais complicado e mais inteligente.
A sequência de abertura, na qual Leonard mata um policial corrupto chamado Teddy (Joe Pantoliano), é a única tomada que literalmente opera de trás para frente: nela vemos uma polaróide que se desrevela, uma bala que entra no cano da arma e Teddy volta à vida por um instante.
Essa sequência, colorida, é seguida por um trecho em branco e preto no qual vemos Leonard explicando um pouco suas circunstâncias, em uma narração.
A próxima sequência extensa mostra Leonard se encontrando com Teddy e indo a um edifício abandonado, onde vemos, de novo, Leonard atirar em Teddy.
Eis o que vamos compreendendo enquanto o filme avança: Leonard Shelby é um ex-investigador de seguros. Na sua vida pregressa, intrusos estupram e matam sua mulher. Ele mata um deles, mas o outro o golpeia na cabeça e escapa. O ferimento causa uma doença chamada amnésia antirretrógrada, o que quer dizer que ele se torna incapaz de criar novas memórias de longo prazo.
Suas memórias passadas de longo prazo continuam intactas, mas seu nível de atenção atual lhe permite reter um máximo de 15 minutos (ou ainda menos), e, de forma nenhuma, essas memórias transitórias encontrarão espaço permanente em seu cérebro.
Já que ele é incapaz de perceber a passagem do tempo, a morte de sua mulher está sempre fresca em sua memória, o que o motiva a encontrar o agressor e matá-lo.
Ele deixa lembretes para si mesmo em bilhetes, polaróides e tatuagens. Vemos que ele já possui pistas sobre a identidade do assassino. À medida que o filme recua, vemos como descobriu cada peça do quebra-cabeças.
Pode ser complicado e temos motivos para duvidar que a verdade esteja sendo dita. No entanto, os antecedentes nos são apresentados como flashbacks e vindos da memória de um homem cujo cérebro foi danificado.
Leonard diz no começo do filme: "A memória não é confiável. Não é nem sequer boa. Pergunte à polícia; os depoimentos de testemunhas oculares são dúbios... Memórias podem ser alteradas ou distorcidas e são irrelevantes se você dispõe dos fatos".
Mesmo que Nolan tenha trapaceado ao construir sua história, "Amnésia" continua a ser uma maravilhosa realização. Não só é um filme que desafia a audiência, exigindo o pensamento e a atenção que Hollywood jamais parece invocar, mas usou essa inteligência para suscitar questões sobre como percebemos a realidade. (ANDY KLEIN)


Tradução Paulo Migliacci



Texto Anterior: "Amnésia": Diretor destrói premissa que sustenta longa
Próximo Texto: Carlos Heitor Cony: O primeiro romance-reportagem de nossa literatura
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.