São Paulo, Terça-feira, 31 de Agosto de 1999
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Darcy Ribeiro, o útero do povo

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

O antropólogo mineiro Darcy Ribeiro fez a política pública do útero no país das mães solteiras, principalmente das mães solteiras pobres acusadas de se entregarem ao delírio de amor. Sensível ao eros da antropofagia de Oswald de Andrade, Darcy foi o melhor discípulo dos educadores Roquete Pinto e Anísio Teixeira.
São Paulo adora Darcy Ribeiro, ainda que movido por um amor esquisito. Talvez Darcy tenha sido mulher que nem Fellini. Daí a ambiguidade do nome. Dar-cy, ora muié, ora ôme. Em Montes Claros foi imperador da Folia do Divino.
A pomba do Espírito Santo é a essência da cultura popular, dizia Agostinho da Silva para os Portugais. Em função do lugar do útero em sua antropologia, Darcy Ribeiro foi paparicado pelas cunhãs e cunhantãs da tribo brasileira. Teve enterro pansexual no Rio de Janeiro.
A arquiteta Lina Bo Bardi dizia que São Paulo precisava da energia civilizatória de Darcy Ribeiro, cuja mulherofilia ajuda os machos ex-predadores de índios a se libertarem do sexo com membrum virile desprovido de ternura. Sua missão civilizatória seria pacificar a relação dos machos com as fêmeas, porque a imortalidade da alma na Paulicéia passa pelo santo São Paulo, um judeu helênico dividido entre a carne e o espírito.
Mario de Andrade aparece como o Kant paulista do Modernismo que se espelhou em Machado de Assis, enquanto Oswald de Andrade viajou na épica de Getúlio Vargas. O poeta Álvares de Azevedo morreu virgem que nem Pascal.
O autor da "Maíra" conheceu a alma paulista dilacerada entre a teoria e a práxis, apesar do elogio sincero ao ensaio "A dialética da Colonização", de Alfredo Bosi, que é um intelectual avis rara na maré desnacionalizada de São Paulo. Destarte, pouca gente conhece tão bem quanto Darcy a vida intelectual dos paulistas: de Anchieta a Claudio Abramo.
No exterior, Darcy Ribeiro era considerado um antropólogo especialista em povos iletrados.
Seu mestre Anísio Teixeira, nascido em Caiteté, dizia que era suicídio um povo aprender a ler só para ler a Bíblia. Marquês de Pombal estava certo ao expulsar os jesuítas.
A igreja de Dom Helder posicionou-se contra a educação pública, assim como sociólogo Betinho correu por fora do rango dos Cieps.
A sorte de Darcy foi ter sido descolonizado por Guerreiro Ramos, que o tirou da juventude roleta-russa com curra e motocicleta.
Revolução não é sinônimo de violência nem insurreição armada. Etnólogo das civilizações, quis escrever a história crítica da tecnologia que Karl Marx reivindicara em "O Capital".
Nossa pobreza financiou a prosperidade das sociedades ricas. Não somos a Europa, nem o Ocidente, nem a América original. O brasileiro é propenso à inovação. Basta presenciar a chegada de um caminhão na roça.
Nós começamos como mameluco. Do árabe "mameluc". Identificamo-nos com o pai, mas falamos melhor a língua materna.
Em todas as regiões do Brasil, o mameluco é o denominador comum popular, e que já foi aliciador de índios para corte e carreto de pau-brasil. Mameluco eunuco. Mameluco testa de ferro. Mameluco, primeiro brasileiro. Sertanista bandido. Gerado pelo colonizador. Oprimindo seu próprio povo. Traidor do gentio materno. Esse é o bandeirante psicanalizado por Darcy Ribeiro.
Os brasileiros nascemos sipaios, isto é, incumbidos da defesa interna dos interesses alienígenas. Trazemos no ventre da mãe indígena as perdas internacionais do colonialismo. Produzimos o que não consumimos. Existimos para suprir as necessidades alheias.
Nossa industrialização não gerou efeitos renovadores, dentre os quais um corpo nacional de cientistas e tecnólogos. A Cepal é o nosso pecado original. Saímos do domínio ibérico para cair sob a influência britânica no momento em que os EUA se libertaram da Inglaterra pela independência.
Darcy Ribeiro considerava Lévi-Strauss um "teórico boboca", depois de ter estudado com o alemão Baldus em São Paulo. Redigiu o projeto do Parque do Xingu e desbundou conversando com Getúlio Vargas em 1952.
No Peru, Glauber Rocha mandou recado para FHC ouvir a sapiência do magnífico reitor Darcy Ribeiro. Debalde. Continuamos doentes doendo em dólares. Hasta quando?


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