São Paulo, sábado, 31 de outubro de 2009

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Crítica

Em filme premiado, Haneke investiga gênese do mal em um vilarejo alemão

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Quem já viu algum filme do diretor Michael Haneke ("Código Desconhecido", "A Professora de Piano", "Caché") sabe que ele faz o que se pode chamar de cinema da crueldade.
O título de seu primeiro trabalho a causar impacto por aqui, "Funny Games" (1997), foi impropriamente traduzido por "Violência Gratuita". Ora, o que a obra de Haneke mostra, e "A Fita Branca" confirma, é que nenhuma violência é gratuita.
O problema é que suas origens são, muitas vezes, nebulosas. O cenário de "A Fita Branca" é um vilarejo do norte da Alemanha, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Nesse ambiente bucólico, onde todos se conhecem e os personagens são referidos simplesmente como "a parteira", "o barão" ou "o pastor", começam a acontecer fatos estranhos, pequenas e grandes maldades de autoria desconhecida que, juntas, configuram um clima sinistro.
O primeiro desses fatos é uma armadilha (um arame quase invisível estendido entre dois troncos) que derruba o cavalo do médico local (Rainer Bock), ferindo seriamente animal e cavaleiro. Como este não tem inimigos e é prezado pela comunidade, até por ser o único médico da região, o evento é lido como uma travessura de mau gosto.
A suspeita recai sobre as crianças e adolescentes, que passam a sofrer uma vigilância mais cerrada. Porém, com a crescente violência dos atentados seguintes, cometidos contra as próprias crianças, a comunidade passa a resistir à ideia de que tamanha maldade possa habitar corações tão jovens e supostamente puros.
O que fica claro é que a harmonia e a tranquilidade anteriores aos crimes se faziam sob o signo da repressão. As figuras dominantes encarnam diferentes formas de autoridade: política (o barão), religiosa (o pastor), científica (o médico). Contra esses pais reais e simbólicos, se batem as pulsões juvenis, constritas por regras tirânicas. Um exemplo eloquente é o do filho adolescente do pastor, Martin (Leonard Proxauf), que passa a dormir com as mãos amarradas à cama quando o pai descobre que ele se masturba.
Michael Haneke descreve esse silencioso inferno com uma clareza análoga ao límpido preto e branco das imagens. Seu cinema se depurou de maneira a realçar a complexidade das ideias e das emoções por meio de uma linguagem despojada, translúcida. Em "A Fita Branca", a exposição é cronologicamente linear, conduzida pela narração em "off" do personagem do professor, que muitos anos depois, já velho, reconstitui em tom quase neutro os terríveis acontecimentos.
Críticos viram nesse filme, Palma de Ouro em Cannes-09, um retrato da gênese do nazismo. Pode ser. Haneke nasceu em Munique e cresceu na Áustria, dois berços da ideologia nacional-socialista, e deve saber um par de coisas sobre isso. Mas o que torna "A Fita Branca" mais perturbador é a sensação de que aquela aldeia, ainda que profundamente alemã, é como o sertão de Guimarães Rosa: está em toda parte.


A FITA BRANCA

Quando: hoje, às 18h20, no HSBC Belas Artes 2 (14 anos)
Avaliação: ótimo
Veja o trailer em: www.folha.com.br/093031




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