São Paulo, sexta, 31 de outubro de 1997.




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Noel Rosa e a tradição literária do carioca

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

Chamar Noel Rosa de filósofo do samba é xingar, ao mesmo tempo, a filosofia, o samba e, sobretudo, o próprio Noel Rosa. Deus é testemunha de que nada tenho contra os que xingam a filosofia, julgo até necessário e louvável que se meta o malho na ciência que foi considerada a "ancilla theologiae" e só ajudou a desgraçar o homem. Mas nem o samba e muito menos o Noel merecem a xingação. Pelo contrário.
Ele foi, acima de tudo, um poeta. Estranha-se que os estudiosos do movimento de 1922 não tenham percebido o valor e a carga moderna da sua obra. Nas antologias e compêndios escolares sobre o nosso modernismo, em que figuram tantas mediocridades, não há referência ao autor de "Três Apitos", "Feitio de Oração", "Último Desejo".
Não se compreende como homens inteligentes e dotados de largueza crítica, como Mário de Andrade e Alceu de Amoroso Lima, não tenham reconhecido no trovador de Vila Isabel um dos momentos mais legítimos do jeito moderno de expressar uma visão de mundo. A temática de Noel, a sua linguagem direta e despojada, são manifestações que foram preconizadas na Semana de Arte Moderna.
Enquanto parte da crítica oriunda daquele movimento enaltecia os versos artificiais de Catulo da Paixão Cearense, havia na Vila um rapazola iniciando o curso de medicina e buscando a poesia em suas raízes mais legítimas. Sem saber, ele fazia analogia com os poetas gregos e os trovadores medievais. A cítara clássica ou o alaúde medieval transformados em violão foram circunstâncias técnicas ditadas pela evolução musical. A mesma evolução que fabricaria a guitarra elétrica -da qual, aliás, mantenho prudente distância e progressivo horror.
Pessoalmente, não me amarro muito na música de Noel. O peso de sua poesia prejudicou alguns de nossos compositores, Kid Pepe, por exemplo. Ou João de Barro, que das "Pastorinhas" a "Garota Saint Tropez" pode ser considerado o melhor cronista do nosso cancioneiro popular.
Prejudicou sobretudo Vadico, autor dos chamados grandes sambas: "Conversa de Botequim", "Feitiço da Vila", "Feitio de Oração" etc. Noel servia-se da música como instrumento, como acidente para embrulhar a essência que buscava. Da música somente aproveitava a transparência e a mobilidade. Com ou sem música, Noel seria Noel. Como Pixinguinha que, com letra ou sem letra, seria o gigante que é.
Em sua poesia, além do entrecho necessariamente lírico de um gênero popular, como o samba, a temática social está sempre presente -e esse é mais um traço que o aproxima dos melhores momentos do nosso modernismo.
Sem agredir o veio natural do samba "que nasce do coração", Noel introduziu cenários novos e personagens inéditos em nossa gesta. A fábrica, por exemplo, que quando apita "faz reclame de você". Ou o João Ninguém, "que não é velho nem moço" e, mesmo sem ter vintém, "vive a fumar charuto". Apesar de nunca ter lido Lima Barreto, ele ampliou o arquétipo do carioca. Foi, em todos os sentidos, o continuador do autor de "Isaías Caminha", levando a linguagem, a bossa e o "pathos" do carioca ao estágio de arte final.
Literariamente falando, o carioca já estava esboçado naquele sargento de milícias de Manuel Antônio de Almeida. Machado de Assis foi carioca em outro nível. O moleque do morro do Livramento deu de ler os ingleses, ascendeu socialmente, fundou uma academia e foi morar e morrer no Cosme Velho burguês. Mais carioca do que qualquer outro, ele se refugiou naquilo que chamou de "rabugens de pessimismo". Com olho esperto, protegido pelo pincenê aristocrático, gozou a condição humana e escreveu Quincas Borba -um João Ninguém que podia ter dado certo se não desse na loucura.
Lima Barreto é o natural precursor de Noel. A diferença entre os dois é a mesma existente entre a poesia e a prosa. O genial mulato anunciou o poeta de Vila Isabel.
Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Lima Barreto e Noel Rosa são expressões autônomas de uma visão de mundo própria do carioca. "Conta velha não se paga e conta nova deixa-se ficar velha" é uma regra que pode ser atribuída a qualquer um dos quatro. Depois deles, o tipo ficou definido, sociologicamente catalogado.
Em termos musicais, Noel deve seus melhores sambas a Vadico -todos sabemos disso. Foi também parceiro de outros, mas sem o mesmo brilho. Seus grandes momentos são mesmo literários, sobretudo na facilidade com que encontrava rimas. Acho que, depois de Camões e Augusto dos Anjos, poucos como ele souberam rimar com tanta facilidade.
Em "Com que Roupa?" chega ao preciosismo de rimar verbos com substantivos: "Eu hoje estou pulando como um sapo pra ver se escapo desta praga de urubu". E pouco antes de morrer, o ex-estudante de medicina fez um samba rimando urina com hemoglobina, rima bem mais pobre, mas rica na capacidade de expressar o desprezo pelo mundo -que é talvez o truque mais perdoável do jeito carioca de caminhar pela vida.



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