|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Noel Rosa e a tradição literária do carioca
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Chamar Noel Rosa de filósofo
do samba é xingar, ao mesmo
tempo, a filosofia, o samba e,
sobretudo, o próprio Noel Rosa. Deus é testemunha de que
nada tenho contra os que xingam a filosofia, julgo até necessário e louvável que se meta
o malho na ciência que foi
considerada a "ancilla theologiae" e só ajudou a desgraçar o
homem. Mas nem o samba e
muito menos o Noel merecem
a xingação. Pelo contrário.
Ele foi, acima de tudo, um
poeta. Estranha-se que os estudiosos do movimento de 1922
não tenham percebido o valor
e a carga moderna da sua
obra. Nas antologias e compêndios escolares sobre o nosso
modernismo, em que figuram
tantas mediocridades, não há
referência ao autor de "Três
Apitos", "Feitio de Oração",
"Último Desejo".
Não se compreende como homens inteligentes e dotados de
largueza crítica, como Mário
de Andrade e Alceu de Amoroso Lima, não tenham reconhecido no trovador de Vila Isabel
um dos momentos mais legítimos do jeito moderno de expressar uma visão de mundo.
A temática de Noel, a sua linguagem direta e despojada,
são manifestações que foram
preconizadas na Semana de
Arte Moderna.
Enquanto parte da crítica
oriunda daquele movimento
enaltecia os versos artificiais
de Catulo da Paixão Cearense,
havia na Vila um rapazola iniciando o curso de medicina e
buscando a poesia em suas raízes mais legítimas. Sem saber,
ele fazia analogia com os poetas gregos e os trovadores medievais. A cítara clássica ou o
alaúde medieval transformados em violão foram circunstâncias técnicas ditadas pela
evolução musical. A mesma
evolução que fabricaria a guitarra elétrica -da qual, aliás,
mantenho prudente distância
e progressivo horror.
Pessoalmente, não me amarro muito na música de Noel. O
peso de sua poesia prejudicou
alguns de nossos compositores,
Kid Pepe, por exemplo. Ou
João de Barro, que das "Pastorinhas" a "Garota Saint Tropez" pode ser considerado o
melhor cronista do nosso cancioneiro popular.
Prejudicou sobretudo Vadico, autor dos chamados grandes sambas: "Conversa de Botequim", "Feitiço da Vila",
"Feitio de Oração" etc. Noel
servia-se da música como instrumento, como acidente para
embrulhar a essência que buscava. Da música somente
aproveitava a transparência e
a mobilidade. Com ou sem
música, Noel seria Noel. Como
Pixinguinha que, com letra ou
sem letra, seria o gigante que é.
Em sua poesia, além do entrecho necessariamente lírico
de um gênero popular, como o
samba, a temática social está
sempre presente -e esse é
mais um traço que o aproxima
dos melhores momentos do
nosso modernismo.
Sem agredir o veio natural
do samba "que nasce do coração", Noel introduziu cenários
novos e personagens inéditos
em nossa gesta. A fábrica, por
exemplo, que quando apita
"faz reclame de você". Ou o
João Ninguém, "que não é velho nem moço" e, mesmo sem
ter vintém, "vive a fumar charuto". Apesar de nunca ter lido
Lima Barreto, ele ampliou o
arquétipo do carioca. Foi, em
todos os sentidos, o continuador do autor de "Isaías Caminha", levando a linguagem, a
bossa e o "pathos" do carioca
ao estágio de arte final.
Literariamente falando, o
carioca já estava esboçado naquele sargento de milícias de
Manuel Antônio de Almeida.
Machado de Assis foi carioca
em outro nível. O moleque do
morro do Livramento deu de
ler os ingleses, ascendeu socialmente, fundou uma academia
e foi morar e morrer no Cosme
Velho burguês. Mais carioca
do que qualquer outro, ele se
refugiou naquilo que chamou
de "rabugens de pessimismo".
Com olho esperto, protegido
pelo pincenê aristocrático, gozou a condição humana e escreveu Quincas Borba -um
João Ninguém que podia ter
dado certo se não desse na loucura.
Lima Barreto é o natural
precursor de Noel. A diferença
entre os dois é a mesma existente entre a poesia e a prosa.
O genial mulato anunciou o
poeta de Vila Isabel.
Manuel Antônio de Almeida,
Machado de Assis, Lima Barreto e Noel Rosa são expressões
autônomas de uma visão de
mundo própria do carioca.
"Conta velha não se paga e
conta nova deixa-se ficar velha" é uma regra que pode ser
atribuída a qualquer um dos
quatro. Depois deles, o tipo ficou definido, sociologicamente
catalogado.
Em termos musicais, Noel deve seus melhores sambas a Vadico -todos sabemos disso.
Foi também parceiro de outros, mas sem o mesmo brilho.
Seus grandes momentos são
mesmo literários, sobretudo na
facilidade com que encontrava
rimas. Acho que, depois de Camões e Augusto dos Anjos,
poucos como ele souberam rimar com tanta facilidade.
Em "Com que Roupa?" chega
ao preciosismo de rimar verbos
com substantivos: "Eu hoje estou pulando como um sapo pra
ver se escapo desta praga de
urubu". E pouco antes de morrer, o ex-estudante de medicina fez um samba rimando urina com hemoglobina, rima
bem mais pobre, mas rica na
capacidade de expressar o desprezo pelo mundo -que é talvez o truque mais perdoável do
jeito carioca de caminhar pela
vida.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|