Índice geral Ilustrissima
Ilustrissima
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Inédito

Grande Hotel Abismo

O amor é mais frio que a morte

RESUMO A editora WMF Martins Fontes lança neste mês "Grande Hotel Abismo - Por uma Reconstrução da Teoria do Reconhecimento", tese de livre-docência defendida na USP. Segundo o autor, "trata-se de mostrar como, quando é questão do homem, melhor uma imagem claramente difusa do que outra falsamente nítida".

VLADIMIR SAFATLE

Sem dúvida, a vida é um processo de destruição, mas os golpes que compõem o lado dramático da obra (...) não mostram seu efeito de uma vez só.

Scott Fitzgerald

Vivemos aliás numa época em que a universalidade do espírito está fortemente consolidada, e a singularidade (Einzelnheit), como convém, tornou-se ainda mais indiferente (gleichgültiger); época em que a universalidade se aferra a toda a sua extensão e riqueza acumulada e as reivindica para si.

A parte que cabe à atividade do indivíduo na obra total do espírito só pode ser mínima. Assim, ele deve esquecer-se, como já o implica a natureza da ciência.

Na verdade, o indivíduo deve vir-a-ser, e também deve fazer o que lhe for possível; mas não se deve exigir muito dele, já que tampouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo.

ESTAS AFIRMAÇÕES são importantes por sintetizarem tudo aquilo que várias linhas hegemônicas do pensamento filosófico do século 20 imputaram a Hegel. Filósofo da totalidade do Saber Absoluto, incapaz de dar conta da irredutibilidade da diferença e das aspirações de reconhecimento do individual às estratégias de síntese do conceito.

Expressão mais bem-acabada da crença filosófica de que só seria possível pensar através da articulação de sistemas fortemente hierárquicos, com o consequente desprezo pela dignidade ontológica do contingente, desse mesmo contingente que "tampouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo".

Defesa de uma história na qual o presente apresentaria uma "universalidade do espírito fortemente consolidada", história teleológica esvaziada da capacidade em apreender um tempo no qual acontecimentos ainda fossem possíveis.

Em todas essas acusações transparece o que teria sido a impossibilidade hegeliana em dar conta de um particular que não deveria nem poderia ser reduzido à condição de mera particularidade. Como se, em Hegel, o particular fosse apenas a ocasião para a realização concreta do universal, não tendo, com isto, realidade alguma em si. [...]

Mas podemos nos perguntar sobre a correção de tais interpretações. Hegel teria simplesmente ignorado as exigências necessárias para o reconhecimento da individualidade ou estaria, na verdade, procurando construir as condições para uma recompreensão dos processos de individuação?

Estaríamos diante de um traço definidor dos limites da filosofia hegeliana ou este seria o ponto mais importante de um amplo projeto que visa fornecer um conceito renovado de individualidade em relação ao qual ainda não fomos capazes de nos medir?

CONSCIÊNCIA-DE-SI Sabemos que Hegel desenvolve seu conceito de individualidade através da noção de consciência-de-si. No entanto, esquecemos com frequência como a consciência-de-si hegeliana não é um conceito mentalista próprio à reflexividade de uma subjetividade autossuficiente que se delimita em relação ao que lhe é exterior.

Na verdade, consciência-de-si é, para Hegel, um conceito relacional que visa descrever certos modos de imbricação entre sujeito e outro que têm valor constitutivo para a experiência de si mesmo.

Por ser a consciência-de-si um conceito relacional, seus atributos maiores na dimensão prática (como determinação, autonomia, liberdade e imputabilidade) só podem ser pensados em seu verdadeiro sentido quando abandonamos a crença de que a experiência da ipseidade está assentada na entificação de princípios formais de identidade e unidade. Até porque a consciência-de-si não se funda na apreensão imediata da autoidentidade, mas naquilo que nega sua determinação imanente.

Se quisermos utilizar um vocabulário contemporâneo, diremos que a consciência-de-si hegeliana é o locus de uma experiência fundamental de não identidade que se manifesta através das relações materiais do sujeito ao outro.

Relações essas que são pensadas a partir das figuras do trabalho, do desejo e da linguagem. Não identidade cuja verdadeira consequência no interior da reflexão sobre a dimensão prática da ação só poderá ser lentamente esboçada por este livro.

Mas dizer que a consciência-de-si é um conceito relacional é ainda dizer muito pouco. Pois isto pode simplesmente significar que toda subjetividade é, desde o início, dependente de uma estrutura intersubjetiva de relações que a constitui e a precede.

ALTERIDADE No entanto, parece que Hegel quer dizer algo a mais. Para tanto, precisaremos compreender melhor quem é esse outro com o qual me relaciono em experiências constitutivas que se dão no campo do trabalho, da linguagem e do desejo. Trata-se apenas de uma outra consciência-de-si ou de uma alteridade mais profunda que está para além do que determina uma individualidade como objeto de representação mental, um para além que me coloca em confrontação com algo que, do ponto de vista da consciência, é indeterminado? E, se este for o caso, o que pode exatamente significar, nesse contexto, essa expressão tão aproximativa: "uma alteridade mais profunda"?

Se seguirmos esta segunda hipótese, talvez compreendamos melhor por que, para Hegel, a individualidade livre (ou seja, a individualidade que realizou seu processo de formação) é aquela que leva ao campo da determinação a força disruptiva da confrontação com o indeterminado e que, por isto, tem a capacidade de fragilizar toda aderência limitadora a uma determinidade finita. [...]

INDETERMINADO Essa confrontação com o indeterminado enquanto processo fundamental de constituição da individualidade ficará mais clara se nos perguntarmos pela função de experiências limites como aquelas desempenhadas pela morte e pela angústia no processo de formação da consciência-de-si.

Veremos que, longe de serem meros motivos de uma leitura demasiado "existencialista" da fenomenologia hegeliana ou ainda de uma temática moralizadora vinculada a um processo de formação ligado ao ressentimento e resignação diante da finitude (como quer Deleuze e, de certa forma, Gérard Lebrun), a morte e a angústia no caminho de formação da consciência-de-si têm funções lógicas bastante precisas.

Pois elas indicam o processo necessário de abertura àquilo que, do ponto de vista da consciência imersa em um regime de pensar marcado pela finitude da representação e dos modos de categorização do entendimento, só pode aparecer como desprovido de determinação.

Neste sentido, não deixa de ser irônico lembrar que a intuição de Kojève a respeito da centralidade da confrontação com a morte no processo de formação da consciência-de-si não era exatamente incorreta. Restava apenas descrever de maneira mais adequada sua função fenomenológica.

Por outro lado, insistir nesse aspecto nos permitirá mostrar como, a partir de uma perspectiva hegeliana, o processo de reconhecimento da individualidade não pode estar restrito ao simples reconhecimento da reivindicação de direitos individuais positivos que não encontram posição em situações normativas determinadas, como o quer Honneth ao afirmar não ser possível compreender por que a "antecipação da morte, seja a do próprio sujeito seja a do Outro deveria conduzir a um reconhecimento da reivindicação de direitos individuais". O mesmo Honneth para quem a experiência da indeterminação é vivenciada pela consciência basicamente como fonte de sofrimento, como "um estado torturante de esvaziamento".

De fato, a questão não pode ser respondida se compreendermos o que exige reconhecimento como sendo direitos individuais, expressões singulares da autonomia e da liberdade. Mas não é isto que Hegel tem realmente em vista.

Tanto é assim que ele não teme afirmar que o não arriscar a vida pode produzir o reconhecimento enquanto pessoa, mas não enquanto consciência-de-si autônoma e independente. Como se a verdadeira autonomia da consciência-de-si só pudesse ser posta em um terreno para além (ou mesmo para aquém) da forma da pessoa jurídica portadora de diretos positivos e determinações individualizadoras.

Por isto, tudo nos leva a crer que Hegel insiste que se trata de mostrar como a constituição dos sujeitos é solidária da confrontação com algo que só se põe em experiências de negatividade e des-enraizamento que se assemelham à confrontação com o que fragiliza nossos contextos particulares e nossas visões determinadas de mundo. A astúcia de Hegel consistirá em mostrar como o demorar-se diante dessa negatividade é condição para a constituição de um pensamento do que pode ter validade universal para os sujeitos.

Nota do editor

As notas de rodapé, quase todas de referências bibliográficas, foram eliminadas nesta versão do texto.

Na Flip

O filósofo Vladimir Safatle participa da mesa "Visões Diametralmente Opostas: Direita e Esquerda", na Casa Folha, em Paraty, na sexta (6), às 15h, com o também colunista da Folha João Pereira Coutinho.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.