São Paulo, domingo, 28 de agosto de 2011

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Estamos surdos à dissonância

PAULO ROBERTO PIRES

POR UMA LÓGICA
simples, quase acaciana, a vida literária é espelho fiel do país: sob muitos aspectos, melhorou muito nos últimos dez anos. Mas, de um ponto de vista, vai de mal a pior, como o Brasil: estamos surdos à dissonância. Divergir virou, literalmente, ofensa pessoal. Ou ataque a "grandes causas" entoadas por coros de contentes.
Me propus discutir aqui apenas e tão somente o trabalho de Nelson de Oliveira na antologia "Geração Zero Zero". Se o fiz é porque, obviamente, acho que o livro merece ser considerado. Mas minha opção de análise, que propositalmente não contemplou os autores selecionados para concentrar-se no que o antologista poderia nos dizer deles e não disse, foi considerada por ele um atestado de incompetência intelectual.
Assim como Oliveira, já intervim de diversas formas no debate: escrevendo sobre os autores ou editando-os, na universidade e fora dela. Até então, meus, digamos, "pares" retribuíram o respeito com que os tratei e trato. Mas na primeira divergência séria, divergência intelectual, entra em cena a desqualificação pessoal. E o vale-tudo.

ESTRANHOS TEMPOS Três histórias ajudam, acho, a entender melhor nossos estranhos tempos. A primeira é do Brasil dos anos 1960. Um importante editor reuniu-se com um de nossos mais truculentos ditadores. Reclamava o general que alguns artigos publicados no jornal dirigido por seu interlocutor eram desrespeitosos; contra-argumentava o jornalista que eram apenas críticas, normais num debate. A conversa prosseguiu, difícil, até que o militar não se conteve: "Sabe o que é? Eu gosto mesmo é de elogio".
A segunda é da década seguinte. Em 1976, Heloisa Buarque de Hollanda sofreu críticas violentíssimas pela antologia "26 Poetas Hoje" -a mais pesada delas falava em "lixeratura". Sua resposta foi hilariante: sessão de fotos para uma revista em que, ao lado de Charles, um dos poetas, lavava e passava os poemas "sujos".
A terceira envolve um dos críticos mais importantes do século 20, Edmund Wilson -a quem, é óbvio, não me comparo.

BALANÇO Como se sabe, Wilson foi um militante, que apresentou aos EUA gente como Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald. Em 1926, publicou, anonimamente, "The All Star Literary Vaudeville", balanço de geração que ilumina o nosso momento literário: "O autor deste artigo é um jornalista cujas atividades profissionais tem dito respeito sobretudo ao movimento literário americano dos últimos 15 anos. O autor escreveu críticas das produções daquele movimento e trabalhou em revistas com ele identificadas; o autor também tem vivido constantemente o clima deste momento. Ele tem um certa simpatia humana por todas as suas manifestações, mesmo por aquelas que, artisticamente, desaprova.
"É para ele profundamente gratificante que a literatura americana tenha sido 'vendida' para o público americano e, pelo menos a princípio, no caso de um ataque externo ele lutaria ao lado do menos inteligente, do menos desinteressado de seus confrades, pois ele próprio serviu naquele exército. Mas recentemente lhe ocorreu que, ao fazer um balanço e ser impecavelmente honesto consigo mesmo, teve que admitir que alimenta um interesse quase nulo pela maioria das mercadorias literárias que pode encontrar num mercado hoje tão vasto; e que este desinteresse chega ao ponto de repugná-lo com a publicidade que se desenvolveu a partir deste mercado.
"Ele deve levar em conta o fato de que hoje é quase impossível separar as resenhas da publicidade: ambas tendem a dar a impressão de que obras-primas estão sendo produzidas tão regularmente quanto novos modelos de carros. [...] Ou os autores se conhecem pessoalmente ou eles alimentam entre si dívidas de gratidão ou se unem por sua lealdade a alguma causa comum que lhes parece estimulante. E quase todos eles esquecem padrões de crítica em sua devoção às grandes causas comuns."
Em resumo, espírito democrático, humor e honestidade intelectual não fazem mal. Ainda mais numa hora dessas.

Estamos surdos à dissonância. Divergir virou ofensa pessoal. Ou ataque a "grandes causas" entoadas por coros de contentes


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