São Paulo, domingo, 01 de abril de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ sociedade

A vida sob custódia

Nosso acesso à informação sobre quem somos dependeu da decisão de um professor e de um estudante de informática de que garanti-lo era melhor do que ganhar milhões usando essas informações
Manuel Castells
especial para a Folha

Já temos o mapa do que somos. É o genoma humano, cerca de 30 mil genes que, em conjunto e segundo a estrutura do DNA, definem o que somos biologicamente. A personalidade e, por conseguinte, o ser individual são definidos pela interação com a vida e com o meio ambiente. Mas a base biológica da humanidade está preliminarmente identificada. Eu sou um cientista social, não dos outros. Não posso, portanto, explicar seriamente o que isso significa. O que posso, sim, é indicar algumas de suas implicações que podem ser interessantes. A primeira consequência é sobre a própria biologia e sobre a ciência em geral. Acontece que, em vez dos 100 mil genes que se calculava que tínhamos, temos apenas cerca de 30 mil. Isto é, 300 genes a mais que o rato, pouco mais que a mosca e o verme e se prevê que, quando identificarmos o genoma dos macacos, estaremos par a par com eles. Portanto nosso diferencial (e provavelmente o de todas as espécies) não está nos genes, e sim na interação entre os genes. Na complexidade das redes de intercâmbio. Percebem aonde quero chegar?

Redes de genes
Faz algum tempo, Fritjof Capra, físico teórico e, na minha opinião, o mais importante pensador da teoria da complexidade, levantou a hipótese de que a teoria genética atual era um embuste mecanicista. Os genes funcionam quando e como se relacionam entre si. No fundo, como nós. São as redes de genes que, em sua interação biológica ao longo do tempo, foram gerando a vida por meio das propriedades emergentes da matéria. Tendo constatado que nosso patrimônio genético é relativamente pobre, ou nos reduzimos a vermes ou aceitamos a idéia de que nossa natureza biológica (e não apenas nossa sociedade) depende de nossa interação interna, social e com nosso meio ambiente. Isso altera a biologia e, em grande medida, a ciência em geral: passamos (ou, se preferirem, aceleramos a transição) do elementar para o relacional. Concretamente: o modo como vivemos determina aquilo que somos. A segunda grande lição está na maneira como se obteve o mapa do genoma humano. Uma lição que acarretou algumas surpresas. A iniciativa partiu da ciência pública. Um consórcio de cooperação científica internacional, liderado e financiando por instituições dos EUA e do Reino Unido, com participação de cientistas e centros de pesquisa norte-americanos, europeus e japoneses, colaboraram no projeto Genoma Humano, iniciado em 1990. Mas, em meados da década, alguns desses cientistas-empresários comuns nos EUA perceberam o potencial comercial do projeto e também seu ponto fraco. O mapeamento dos genes que configuram nosso corpo pode permitir a identificação de suas irregularidades; portanto, de suas doenças e, portanto, de sua cura. Vender vida é o melhor negócio que existe, como bem sabem as seguradoras e planos de saúde. Por outro lado, o projeto oficial apresentava os dois problemas típicos de toda empresa pública: a fragmentação burocrática e o corporativismo profissional. Corporativismo, neste caso, significa o menosprezo dos biólogos pela informática. Uma empresa privada sabe que nada funciona sem computadores. Então surgiu uma alternativa privada ao projeto do Genoma Humano: a empresa Celera Genomics, dirigida por um cientista, o doutor Craig Venter, que se propôs a mapear o genoma paralela e mais rapidamente, aproveitando a capacidade de cálculo pesado dos computadores munidos de programas capazes de processar rapidamente toda a informação obtida na pesquisa biológica. A data de conclusão do programa público do Genoma Humano fora marcada para 2003. Mas, no início de 2000, a Celera anunciou que teria o mapa até o final do mesmo ano. Pânico no mundo científico. O que aconteceria se uma empresa privada patenteasse o genoma de nossa espécie -ou pelo menos parte dele? Uma senhora de Boston não esperou a resposta: por via das dúvidas, foi até o escritório de patentes e patenteou a si mesma. O diretor do programa público, sir Francis Watson, Prêmio Nobel e descobridor da hélice de DNA, ordenou que o Genoma Humano concluísse o mapeamento imediatamente, ainda em 2000. Fácil de dizer, mas difícil de fazer. Porque se sabia muito, mas não como compatibilizar e relacionar todo esse saber. Eis então que os biólogos das universidades também descobriram a importância decisiva da informática.

Instinto de generosidade
Em dezembro de 1999, o principal pesquisador do programa público, o doutor Lander, do Instituto Whitehead, de Boston, chamou o professor David Haussler, do departamento de informática da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, e lhe pediu ajuda para integrar o enorme volume de dados resultantes da pesquisa biológica. Haussler aceitou o convite, obteve da universidade um crédito especial de US$ 250 mil para a compra de cem computadores e pôs mãos à obra. Mas isso não bastava. O volume de informações era tanto e o tempo tão curto que a tarefa de integrá-los parecia impossível.
Vejam como são as coisas: Haussler, por sua vez, chamou James Kent, um de seus melhores doutorandos. Aos 41 anos, Kent decidira voltar a estudar depois de ter passado uma década numa empresa de multimídia. James Kent resolveu aceitar o desafio porque, segundo ele, "o escritório de patentes do governo é muito irresponsável ao conceder patentes de invenção a descobertas. É algo que me preocupa. Por isso decidimos publicar o conjunto de genes humanos o quanto antes".
Um mês depois, estava feito. Aquilo que o programa público, com centenas de cientistas de todo o mundo, não conseguira fazer, e que a empresa privada, com centenas de milhares de dólares, vinha tentando havia anos, James Kent fez em um mês. Começou em 22 de maio de 2000 e terminou em 22 de junho, escrevendo o programa GigAssembler para o Genoma Humano, com 10 mil linhas de código. Ganhou por três dias a corrida com a Celera. Pelo bem da humanidade. E publicou o resultado na Internet (genome.ucsc.edu). Desde o dia 7 de julho do ano passado, quando o programa idealizado por Kent foi disponibilizado na Web, o site da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, recebe algo em torno de 20 mil visitas diárias.
Ou seja, nosso acesso à informação sobre quem somos dependeu da decisão de um professor e de um estudante de informática de que garanti-lo era melhor do que ganhar milhões usando essas informações. É verdade que a Celera afirma que também publicará as informações que obtiver. Mas nem todas, e não se sabe como. Pois, em última instância, a empresa tem de remunerar seus investidores, o que é normal, pois eles apostaram milhões de dólares no projeto à espera de lucro. Nossa espécie, portanto, se autopreserva (ou pelo menos preserva a informação necessária para tanto) graças mais a seu instinto de generosidade que ao de competição. Não é um mau começo para nosso conhecimento do genoma humano.


Manuel Castells é professor de sociologia na Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA), e autor de, entre outros, "A Era da Informação" (ed. Paz e Terra).
Tradução de Sergio Molina.


Texto Anterior: Crimes podem vir a ser julgados mesmo com a Lei da Anistia
Próximo Texto: + Brasil 501 d.C. - Sergio Paulo Rouanet: Liberdade transcultural
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.