São Paulo, domingo, 01 de abril de 2001

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+ brasil 501 d.C.

Sergio Paulo Rouanet

Liberdade transcultural

O professor Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia em 1998, foi recentemente entrevistado no programa "Roda Viva", da TV Cultura. Alguns debatedores levantaram dúvidas sobre a tese central de Sen, a do desenvolvimento como liberdade, alegando que a liberdade tem pouco valor para quem vive em condições de pobreza absoluta. É uma objeção antiga, derivada em linha reta das críticas que há quase dois séculos vêm sendo feitas às chamadas "liberdades formais". De tão tradicional, essa objeção quase não mereceria ser lembrada, se não tivesse dado ocasião a Sen de explicitar sua concepção de liberdade. Como ele deixou claro, não se trata, apenas, de liberdade política, mas de liberdade numa acepção ampla, e nesse sentido é perfeitamente plausível dizer que a liberdade é ao mesmo tempo o objetivo do desenvolvimento, pois este visa sempre à maior autonomia do indivíduo em termos de participação política, de oportunidades econômicas, de educação e de saúde pública e um meio para o desenvolvimento, pois cada uma dessas liberdades ajuda a promover todas as demais.

Conceito condicionado
Mas há uma objeção não-tradicional, que nos últimos tempos vem ocupando o centro do debate e que não foi feita por nenhum dos participantes: a de que a liberdade é um conceito culturalmente condicionado, válido apenas no Ocidente, e incapaz, como tal, de servir de critério universal para definir e medir o desenvolvimento. Esse argumento foi repetidamente examinado por Sen, não somente no capítulo dez do próprio livro que serviu de base à discussão na tradução brasileira, "Desenvolvimento como Liberdade" (Companhia das Letras, 2000), quanto em conferência pronunciada em 1998 na Universidade de Oxford ("O Primado da Razão Diante da Identidade") e em longo ensaio publicado em julho do ano passado no "The New York Review of Books" com o título de "Oriente e Ocidente - O Alcance da Razão". O foco do debate é a tese dos "valores asiáticos", segundo a qual os princípios da liberdade e da tolerância emanam da cultura individualista do Ocidente e portanto não seriam aplicáveis à Ásia, cuja cultura privilegia valores comunitários, baseados na disciplina e na coesão familiar. Sen mostra que essa tese resulta da conjunção de duas ideologias, que, parecendo opostas, são na verdade complementares: o etnocentrismo europeu, que reivindica para o Ocidente o monopólio das idéias liberais, afirmando que elas jamais floresceram em outras regiões do mundo, e o nacionalismo autoritário da Ásia, que endossa esse julgamento, transformando-o em avaliação positiva. O que os europeus consideram uma deficiência se converte numa superioridade: os asiáticos realmente não são nem tolerantes nem liberais, e isso é excelente. São os "valores asiáticos". É óbvio que a tese dos valores asiáticos é invocada apenas pelos governantes dos países autoritários, que pretendem com isso justificar um regime de força, e não pelos dissidentes, que se contentam, modestamente, com os valores universais. Mas a questão está em saber se há algum fundamento para essa tese. A resposta de Sen é negativa. Os intelectuais europeus constroem uma entidade imaginária chamada "Oriente" por meio do exame seletivo da tradição asiática, considerando apenas aqueles elementos que mais se distanciem da imagem que a Europa tem de si própria. Com isso, cristaliza-se uma cultura "exótica", a cultura oriental, que supostamente dá mais valor à autoridade que à razão e desconhece os princípios da tolerância e do respeito mútuo, que seriam, pelo contrário, os pilares da civilização ocidental. "Mutatis mutandis", os nacionalistas asiáticos aceitam essa construção. Ora, ela é inteiramente falsa, porque baseada numa seletividade inaceitável. Sem dúvida, houve importantíssimos pensadores do Ocidente que defenderam os valores da razão e da liberdade, como Aristóteles, mas houve também autores igualmente influentes que advogaram uma filosofia autoritária, como Platão e santo Agostinho. Inversamente, houve de fato pensadores asiáticos que defenderam posições autoritárias, como Confúcio e o indiano Kautylia (século 4º a.C.), mas são numerosas as correntes intelectuais que se bateram pela razão e pela tolerância. Para ficarmos apenas na Índia, há toda uma literatura secular e agnóstica em páli e sânscrito. O imperador Ashoka (século 3º a.C.) espalhou em todo o seu reino editos gravados em pedra, prescrevendo liberdade e tolerância para todos, sem excluir as mulheres e os bárbaros. O imperador mogul Akbar praticou há 400 anos uma política de neutralidade religiosa por parte do Estado, no mesmo momento em que Giordano Bruno (1548-1600) estava sendo queimado por heresia em Roma. Apesar de muçulmano, Akbar aboliu as medidas que discriminavam os hindus, convidou para sua corte sábios e artistas hindus e confiou a um general hindu o comando de suas Forças Armadas. Akbar escreveu que "a busca da razão e a rejeição do tradicionalismo estão acima de qualquer controvérsia. Se o tradicionalismo fosse apropriado, os profetas teriam apenas repetido os mais velhos, ao invés de anunciarem novas mensagens".

Valor universal
O secularismo de personalidades como Gandhi, Nehru e Tagore talvez derive tanto dessa tradição quanto da influência dos ingleses, que não eram exatamente paladinos da visão secular do mundo. Fora da Índia, há também belos exemplos de tolerância. O judeu Maimônides, perseguido pelos cristãos espanhóis no século 12, encontrou refúgio na corte do sultão muçulmano Saladino. De interesse mais imediato para nossa história, há uma carta de 1526 na qual o rei do Congo comunica ao rei de Portugal que não toleraria a escravidão em seu reino.
Por tudo isso, faz muito mais sentido um sistema classificatório transcultural, que ponha num campo Aristóteles e Ashoka e no outro Platão e Kautylia do que um sistema classificatório historista, no estilo de Samuel Huntington, que acredita em especificidades civilizacionais irredutíveis e não hesitaria em reordenar os campos segundo critérios geoculturais.
Se conhecesse melhor nossa região, não teria sido difícil a Sen encontrar defensores empedernidos da tese dos "valores latino-americanos". Tenho escrito muito sobre esse tema (vide "Elogio do Incesto", em "Mal-Estar na Modernidade") e por isso me dispenso de entrar em detalhes sobre esse aspecto do nosso nacionalismo cultural. Saliento apenas que, como no caso dos "valores asiáticos", se trata de uma posição de direita, sob a camuflagem de uma atitude progressista. Na época do regime militar, muitos dos nossos generais diziam que a democracia e os direitos humanos eram valores de países desenvolvidos, que nada tinham a ver com a "realidade brasileira".
Longe de ser uma ideologia ocidental, a doutrina dos direitos humanos serve para condenar o próprio Ocidente, cujas políticas imperialistas violam o mais elementar dos direitos do homem, o direito a moldar o próprio destino.
Sim, a liberdade é um valor universal, para parodiar o título de um livro de Carlos Nelson Coutinho, escrito numa perspectiva marxista. Amartya Sen está longe de ser marxista, mas é herdeiro de uma tradição universalista que também influenciou Marx, a da economia política inglesa. Sen faz muito bem em manter-se fiel a essa tradição, recusando-se a aceitar a argumentação politicamente reacionária dos que consideram a liberdade um conceito de validade limitada a uma cultura específica. No sentido integral que lhe deu Sen, a liberdade é mais que o fim do desenvolvimento, é mais que um meio para o desenvolvimento, é também um padrão crítico que permite avaliar os modelos existentes de desenvolvimento.
É diante desse tribunal que o processo de desenvolvimento atualmente em curso no Brasil precisa justificar-se. Seria lamentável se os advogados do réu conseguissem a suspensão do julgamento, alegando que o libelo acusatório se baseia num conceito alheio à realidade brasileira: o de liberdade.


Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".


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