São Paulo, domingo, 01 de abril de 2001

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+ cultura

Segredos de uma história singular

Acontece hoje nos EUA a entrega do Pulitzer, criado em 1917 para premiar as melhores produções nas áreas de jornalismo, fotografia, música, teatro e literatura

Tania Menai
especial para a Folha , de Nova York

Hoje, 1º de abril, alguns poucos profissionais do jornalismo americano estarão dando uma guinada de 180 em suas carreiras. Eles serão reverenciados com o Prêmio Pulitzer, o ícone da excelência concedido anualmente a jornalistas e fotógrafos por trabalhos publicados no ano anterior em algum jornal dos Estados Unidos. Estendido às áreas de música, teatro e literatura, esse é um dos mais importantes estímulos à incessante busca pela qualidade. "Este prêmio vai mudar o seu obituário, não a sua vida", ouviu o colunista político Paul Gigot, do "The Wall Street Journal", ao ser premiado no ano passado. A frase é conhecida. "Afinal, no dia seguinte o fechamento está lá da mesma forma", dizem jornalistas e fotógrafos em coro. Alguns acrescentam que o prêmio veio pelo trabalho errado, pois "já fizeram coisa melhor". Achismos à parte, todos ganham mais respeito, reconhecimento e, claro, inveja. Um fotógrafo premiado no começo dos anos 70 chegou a convocar uma coletiva de imprensa para declarar que a partir daquele dia deveria ser chamado de "Jesus Cristo". Para Paul Gigot, nada mudou além de receber mais convites para dar palestras e "levar a mãe para o almoço dos vencedores". O prêmio? US$ 5.000. O valor é simbólico. O prestígio, incalculável. Mas, para os que não sabem administrar a carreira, o Pulitzer pode significar o pico do Everest daí em diante. "Não gostaria de exagerar, dizendo que o Pulitzer é a única coisa importante no jornalismo. Mas os prêmios estimulam sua excelência e por isso algumas matérias podem mudar a trilha da história e dar aos leitores uma compreensão melhor do presente", diz Paul Steiger, editor-chefe do "The Wall Street Journal", em Nova York. Ele sabe do que fala: além de fazer parte do conselho do Pulitzer, viu o "Journal" ganhar nove prêmios desde que assumiu o posto, em 1991 -até agora, a coleção conta com 23 Pulitzers. E o que faz uma matéria merecer um Pulitzer? "A importância da informação para o público, a dificuldade da apuração, a eficiência da apresentação e a qualidade do texto", explica Steiger. "No final, todos querem ganhar um." Nascido na Hungria, em abril de 1847, Joseph Pulitzer foi um dos mais respeitados jornalistas americanos do final do século 19. Apaixonado e visionário, ele liderou os inovadores jornais "New York World" -o de maior circulação na época- e "St. Louis Post-Dispatch". Filho de pai judeu e mãe católica, foi ele o primeiro a levantar a bandeira do diploma em jornalismo e, em 1904, escreveu seu testamento deixando um guia para a criação do Prêmio Pulitzer, um prêmio para incentivar a excelência no jornalismo, na literatura, na música e no teatro. E mais: deu ao conselho desse prêmio, hoje composto por 19 pessoas, total liberdade para substituir, remover ou adicionar categorias à medida que novos ventos trouxessem mudanças. Pulitzer deixou uma herança (na época, US$ 2 milhões) para a criação da Faculdade de Jornalismo da Universidade Columbia, sendo que um quarto desse valor deveria ser destinado a bolsas e prêmios "para o incentivo do serviço público, da literatura americana e do avanço da educação". A faculdade foi criada em 1912, um ano após a morte de Pulitzer. O primeiro prêmio foi concedido em abril de 1917. Desde então, abril é o mês das premiações. Pulitzer foi um "self-made man". Desembarcou nos EUA sem falar inglês (apenas alemão e francês), carregou malas, serviu mesas e comprou um jornal falido, tornando-se editor aos 25 anos. Foi seu vôo solo a inspiração em aferventar novos talentos.

Jurados voluntários
A singularidade do Prêmio Pulitzer sobreviveu ao surgimento do rádio, da televisão, das revistas e da Internet. Ele é concedido apenas a jornais e recebe anualmente mais de 2.000 trabalhos para suas 14 categorias, incluindo matérias especiais, notícias, colunas, críticas, comentários, serviço público, fotos e charges. São os próprios editores que decidem o material que vai para a competição, mas os leitores também podem enviar matérias. Em 1999, o conselho incluiu a premiação para a Internet. Contudo apenas na categoria de serviço público, pois, apesar de a Internet já ter tido um grande impacto no jornalismo, muita coisa é apenas a duplicata da versão impressa.
A sede do Prêmio Pulitzer fica no sétimo andar da Faculdade de Jornalismo da Columbia, no Harlem, em Nova York. Forrado de papéis e livros, está o escritório do administrador do prêmio, Seymour Topping, ou apenas Top. Aos 78 anos, ele nunca ganhou o prêmio, apesar de ter construído uma belíssima carreira. Foi correspondente da agência de notícias Associated Press (AP) por dez anos, passando pela China, por Londres e Berlim. Em Nova York, chefiou a editoria internacional do "The New York Times", encabeçou as sucursais do jornal em Moscou e no Sudeste Asiático e alcançou o posto de editor-chefe do jornal. Em 1993, trocou o "Times" pelo "Pulitzer".
Top explica que a premiação é feita em duas etapas. Para cada categoria, ele escolhe jurados, todos voluntários, bienalmente. Em fevereiro, os jurados se reúnem na Columbia e apontam três indicações por categoria. Depois de estudar as opções, o conselho se reencontra no início de março no lendário World Room, no terceiro andar da escola de jornalismo. A sala é famosa pelos vitrais com a imagem da Estátua da Liberdade entre dois globos, que pertenciam à redação do "New York World". Três dias de discussão e, "voilà", o veredicto.
"O conselho é feito por alguns dos melhores jornalistas e acadêmicos dos EUA", diz Topping. Os integrantes são eleitos por três períodos de três anos cada. Dessa forma, o conselho se mantém independente, não se reporta nem mesmo à Columbia. Topping afirma que o processo de seleção do Pulitzer nunca sofreu censura, até porque as matérias em questão já foram publicadas em jornais. Há quem compare o Prêmio Pulitzer ao Prêmio Nobel, um reconhecimento por toda a carreira. Mas o Pulitzer está mais para uma medalha olímpica: você se esforça a vida toda, mas deve vencer aquela competição específica. Existem grandes jornalistas da velha-guarda que nunca viram a cor desse prêmio. Para se ter uma idéia, no ano passado, um dos prêmios foi parar nas mãos de um jornalista de 27 anos. J.R. Moehringer, do "Los
Angeles Times", ganhou um Pulitzer por uma matéria sobre como uma balsa iria mudar a vida de uma comunidade no Alabama, onde vivem diversos descendentes de escravos. Mike Downey, colunista do mesmo jornal, não poupou elogios ao jovem repórter, mas escreveu: "Com 27 anos eu só ganharia esse prêmio na categoria de escritor imaturo". Não importa. Bons trabalhos merecem prêmio, independentemente de idade, sexo, credo e cor do jornalista. "São premiadas histórias de impacto, principalmente nas áreas investigativa e de serviço público", lembra Claude Erbsen, vice-presidente de serviços internacionais da Associated Press. "Hoje, os profissionais de jornalismo são mais bem preparados e têm uma melhor formação", lembra ele. "Os prêmios especiais concedidos por trabalhos feitos ao longo de uma vida são raríssimos", ressalta Topping. As regras do Pulitzer são claras. O prazo de entrega dos trabalhos candidatos é sempre em 1º de fevereiro e o quesito "apuração" e veracidade dos fatos é responsabilidade de cada jornal. De qualquer forma, isso é o mínimo que se espera de qualquer veículo de imprensa.

Conflito de interesses
No entanto o velho Joseph já teve bons motivos para se contorcer na tumba. Há um ano, o prêmio de jornalismo investigativo foi dado a três jornalistas da Associated Press por "revelarem, com extensa documentação, as décadas de segredos sobre como os soldados americanos no começo da Guerra da Coréia mataram centenas de civis coreanos num massacre na Ponte No Gun Ri". A matéria cita Edward I. Daily, contando que recebeu a ordem de matar civis, auto-intitulando-se "uma metralhadora". Depois de a matéria ter sido publicada, um professor descobriu, por meio de pesquisas, que Daily não estava lá na época do massacre -essa informação foi obtida dois meses antes de o artigo ser submetido ao Pulitzer (em mais de uma categoria). Com a matéria premiada, o episódio ganhou acusações e espaço na imprensa. Contudo nenhuma atitude foi tomada pela AP (cujo CEO, ou chefe-executivo, Louis Boccardi, faz parte do conselho do Pulitzer) ou pela administração do Pulitzer. É possível que em casos como esse haja conflito de interesses. Afinal o conselho é formado por editores que acabam julgando trabalhos de seus próprios veículos. Em tempo, a Associated Press é o veículo mais premiado nas categorias em que concorre -nada de espantar, pois ela tem um bom time espalhado por todas as partes do mundo. Desde 1922, já abocanhou 46 Pulitzers. Destes, 27 foram para fotografias. As estripulias jornalísticas não são de hoje nem de ontem. Em 1980, a colunista Patricia Smith levou cartão vermelho do "The Boston Globe" por ter inventado uma matéria meses antes de ser indicada a finalista do prêmio. Dois anos mais tarde, o "The Washington Post" devolveu à administração do Pulitzer o prêmio concedido à jornalista Janet Cooke. Ela criou a matéria "Jimmy's World", sobre um menino de oito anos viciado em drogas. O episódio ficou tão famoso, que vai ganhar a tela dos cinemas. Os direitos foram comprados no ano passado pela produtora de cinema Columbia TriStar. O que leva certos jornalistas a escrever caraminholas é uma incógnita. Falta de bons mentores? De boa índole? De um mínimo de ética? Mas até que as previsões feitas por Joseph Pulitzer estão acontecendo: ao longo de todos esses anos, o jornalismo americano amadureceu. "Ele está mais responsável", diz Claude Erbsen, da AP. "Há mais precisão, profundidade, uma grande ênfase na cobertura de assuntos locais e no jornalismo explanatório."

Momentos históricos
"As matérias premiadas representam um "portrait" do que aconteceu durante aquele ano. Além dos textos, visualmente temos uma impressão de como era o mundo nas últimas décadas", diz Topping. A categoria de fotos foi incluída em 1942, quando a imagem começou a exercer um papel fundamental na notícia. Já em 1970, criou-se a categoria das fotos de matérias especiais, que nem sempre chegam à primeira página, mas têm igual importância. O conjunto das fotos premiadas inclui momentos históricos como os soldados americanos erguendo a bandeira americana em Iwo Jima, em 1945. "Essa imagem simboliza a potência em que os EUA se transformaram", diz o historiador Eric Newton, curador de uma exposição sobre as fotos. "Ela está em selos, pôsteres, filmes, livros e esculturas."
Ainda entram para a memória da humanidade a imagem de um soldado na guerra do Vietnã apontando a arma para um prisioneiro assassino, em 1968, e a do ativista e advogado negro James Meredith levando um tiro durante uma marcha pelo direito do voto em 1966, no Mississipi. Quem não se lembra também do exato instante em que o assassino do presidente John Kennedy levou um tiro à queima-roupa, da menina Phan Thi Kim Phuc correndo de uma explosão em Saigon em 1972 ou de uma criança sudanesa se arrastando de fome, sendo observada por um urubu, em 1993? No ano passado, as imagens da tragédia da Columbine High School (em Littleton, Colorado), onde dois alunos fuzilaram seus colegas, garantiram o prêmio à equipe de fotógrafos do "Denver Rocky Mountain News".
John Honenberg, administrador do Pulitzer entre 1954 e 1976, escreveu que, quando o jornalista Howard Simons, ou Howie, morreu aos 60 anos em 1989, o "The Washington Post" reconheceu que ele exerceu um "papel importante" no escândalo Watergate, cuja cobertura diária e persistente do jornal levou o presidente Nixon à resignação. Howie ganhou o Pulitzer na categoria de serviço público, com ajuda dos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein. "Foi Howie quem circulava pela redação gritando, inspirando, dirigindo e insistindo que nós não abandonássemos nossas investigações, sejam quais fossem os níveis de rejeições ou denúncias."
Honenberg ressalta que não importam quantos milhões de novos dispositivos tecnológicos façam os repórteres substituir seus lápis e caderninhos. Não foi a sofisticação de um computador que forçou o presidente Nixon a se demitir. Sempre alguém terá de liderar, inspirar, cavar a verdade. "Você nunca encontrará um chip que faça isso", escreveu ele.


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