São Paulo, domingo, 1 de novembro de 1998

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ANTROPOFAGIA
Ensaio de Borges apresenta semelhanças com o Manifesto de Oswald de Andrade
Tentação nacionalista

CARLOS BASUALDO
especial para a Folha

Talvez seja interessante, como ponto de partida, contrapor o "Manifesto Antropófago" a um texto redigido por Jorge Luis Borges alguns anos mais tarde, onde o escritor argentino tentava dar conta de problemas certamente similares aos que levaram Oswald de Andrade a compor sua tese sobre a identidade nacional. O texto de Borges em questão intitula-se "O Escritor Argentino e a Tradição" e faz parte de um livro de ensaios publicado em 1932, "Discussão". Segundo a nota que acompanha o texto, este seria a transcrição de uma aula proferida pelo jovem Borges no Colegio Libre de Estudios Superiores, na cidade de Buenos Aires.
Por esses anos, Borges e Oswald de Andrade enfrentavam um conjunto de problemas semelhantes: Brasil e Argentina eram -ainda são- países jovens, onde as antigas formas coloniais se diluíam rapidamente diante do fluxo constante da imigração européia. Os costumes mudavam dia após dia e, com eles, cada mínimo detalhe da vida cotidiana, incluindo, claro, o uso da língua, oral e escrita. Ao que parece, as discussões em torno do multiculturalismo se tornaram uma presença obrigatória nesta última década globalizada. Mas vale lembrar que, desde o início, nossas sociedades se constituíram como multiculturais e que as discussões em torno da identidade eram tão ou mais acirradas nas primeiras décadas do século que nestes últimos 15 anos.
Oswald de Andrade pretendia encontrar na antropofagia o fundamento primordial, anterior à colonização européia, de um pragmatismo de base que animaria o emergente povo brasileiro. Lembremos que a fórmula norte-americana para lidar com a hibridação étnica e cultural nas primeiras décadas do século não era o pluralismo liberal que vem permeando as discussões sobre o tema no último decênio, e sim a ideologia do "melting pot", a fusão das diferenças em uma identidade nova, sólida e homogênea.
A imagem do "melting pot" é extremamente clara: a identidade nacional surgiria como resultado de uma transformação quase química, a se realizar no interior de um continente determinado -neste caso, um Estado nacional. Os elementos submetidos ao processo perderiam suas propriedades originais por efeito do calor, adquirindo outras novas no final da reação. Dito de outro modo, trata-se de estabilizar as diferenças e reconvertê-las a um padrão homogêneo.
A solução que Oswald de Andrade apresenta para a questão da identidade nacional é, em certa medida, contraditória. Por um lado, aponta à formulação de um modelo antieuropeu que admita a heterogeneidade. A antropofagia não apenas não propõe a unificação das diferenças, mas estrutura-se com base nelas. A variedade estimula o apetite antropófago, que busca na diversidade, mais que uma matéria dócil ao exercício de transformação identitária, o estímulo para a ação e a mudança. Mas, por outro lado, Oswald de Andrade pretende encontrar o modelo de seu modelo identitário aberto e transformador nas culturas indígenas anteriores à colonização, em um rasgo de essencialismo extremamente ingênuo.
Essa contradição de base permeará todo o modelo antropofágico e suas releituras dos anos 60. Por um lado, a antropofagia oferecerá a possibilidade de construir formações culturais híbridas, heterogêneas e desinibidas em relação às questões de originalidade e procedência. Mas, por outro, esse esquema aberto será presa fácil de uma tentação claramente nacionalista. O imaginário antropofágico oscilará, portanto, entre a tentação universalista e o nacionalismo exacerbado, sem nunca chegar a um ponto de equilíbrio.
Em "O Escritor Argentino e a Tradição", Borges aborda um problema semelhante àquele enfrentado por Oswald de Andrade. A solução borgiana será propor a universalidade da experiência periférica: para Borges, a tradição do escritor argentino é a da literatura ocidental in totum, justamente por não pertencer a nenhuma tradição local específica. O que constituiria o escritor argentino como tal, segundo Borges, seria a possibilidade do exercício da irreverência em relação aos cânones ocidentais.
Penso que o texto de Borges é, paradoxalmente, menos melancólico que o "Manifesto" quanto à questão da identidade nacional. Em compensação, o pragmatismo de Oswald é muito mais incisivo que a formulação borgiana, que restringe à cultura européia o campo referencial do intelectual argentino e, em última análise, sul-americano. No meu entender, a possível atualidade do texto do brasileiro depende em grande parte da possibilidade de contrapô-lo a uma formulação mais complexa da questão do internacionalismo. Por exemplo, a que se encontra no ensaio do argentino.
O pior seria voltar a reler Oswald de Andrade por meio da lente deformadora de alguma forma de nacionalismo. Não se trata simplesmente de inverter a narrativa eurocêntrica para substituí-la por uma hipotética perspectiva totalizadora baseada em um projeto neonacionalista -uma nova história antropofágica do mundo seria um disparate de um ponto de vista estritamente histórico e um contra-senso do ponto de vista antropofágico. A antropofagia literalmente implica a completa caducidade dos projetos totalizadores de qualquer espécie.
O desafio, ao contrário, é ser suficientemente antropofágico para, rompendo preconceitos, permitir-se corrigir o nacionalismo ingênuo, mas extremamente perigoso, de Oswald de Andrade e reescrever o "Manifesto" a contrapelo. Ou de permitir-se ampliar o horizonte referencial borgiano a fim de compreender as culturas não-ocidentais. A meu ver, no diálogo futuro entre esses dois textos das primeiras décadas do século está em jogo uma parte importante do futuro projeto cultural do sul do continente.


Carlos Basualdo é crítico de arte argentino.
Tradução de Sérgio Molina.



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