São Paulo, domingo, 1 de novembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A dentição virtual

E.M. DE MELO E CASTRO
especial para a Folha

Em Lisboa comem-se sardinhas assadas. No Brasil, há 444 anos, alguns índios comeram o bispo Sardinha. Mas, para nós, nem quem come sardinhas fica peixe ou pescador, nem os índios ficaram bispos ou portugueses. Cabe perguntar: onde fica então a metáfora?
É que, se a antropofagia ritual é um ofício mítico e metafórico, como se realiza esse mito e para quem essa metáfora funciona?
A releitura da "Revista de Antropofagia", a 69 anos da sua publicação em 1929, revela-nos a invenção de Oswald de Andrade da moderna antropofagia, como um mito não só dessa mesma modernidade, mas também como uma metáfora fecunda capaz de auto-renovação e de polissemicamente se estender até mesmo à nossa situação finissecular.
É certo que todos os manifestos, declarações, diatribes, invenções e produções das primeiras vanguardas do século 20 chegam hoje até nós como mitos e utopias do alvorecer de um tempo que não chegou realmente a se efetivar, mas mitos e utopias que nós ainda sentimos como nossos em muitos aspectos, principalmente se os soubermos ler e interpretar.
Para isso é necessário dar-lhes a razão e a desrazão que no seu tempo tiveram: a ironia demolidora, a crítica, a diferença, o por vezes desesperado desejo do novo, resultando na necessidade da invenção, contra a mesmice quadrada e a estupidez sentada dos poderes de via única, a que hoje chamaríamos certamente de politicamente corretos.
É essa utopia da invenção absoluta, ou seja, em estado primitivo, o que esses manifestos ainda hoje podem ser para nós, sejam eles os "Manifestos Futuristas" de Almada Negreiros em Lisboa (1917), ou o "Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade em São Paulo (1929). Manifestos em que Almada proclamava que era preciso criar o Portugal do século 20, tal como Oswald, recusando a herança de Portugal colonizador, criava a mais original teoria da identidade brasileira, antropofagicamente devorando e digerindo, na mesma dentada, a própria herança índia (de onde proveio a metáfora antropofágica) e as influências das outras vanguardas européias.
E, no entanto, ambos, Almada e Oswald, poderiam equivaler-se em irreverência icônica e em visualidade primitiva (ou em visualidade icônica e em irreverência primitiva).
É que ambos reconheciam, a seu modo, que é com os olhos que se vê: uma evidência que poucos ainda hoje sabem reconhecer em toda a sua significação!
Oswald, procurando transformar os tabus em tótens, isto é, tornando os impossíveis em possíveis presentificados e materializados numa sociedade nova, a brasileira. Almada perseguindo os arquétipos e as formas "antegráficas" africanas e mediterrâneas, matrizes da civilização ocidental.
Só que Almada estava muito longe dos arquétipos (embora as suas pesquisas e intuições reunidas postumamente em 1982 no livro "VER" sejam verdadeiramente reveladoras) e Oswald estava muito perto dos primitivos: os índios que "não tinham o verbo ser", o que conduz a um "critério biológico". Assim "a adjetivação antropofágica é apenas o desenvolvimento da constatação do que é favorável e do que é desfavorável ao homem biologicamente considerado. (...) É a única introversão que nos permitimos. O índio não tinha o verbo ser. Daí ter escapado ao perigo metafísico que todos os dias faz do homem paleolítico um cristão de chupeta, um maometano, um budista, enfim um animal moralizado, um sabiozinho carregado de doenças" ("Revista de Antropofagia", 2ª dentição, 1º número, 17-3-1929. Assinado por Freuderico, pseudônimo de Oswald de Andrade).
William Burroughs, 50 anos depois, viria a considerar o verbo ser como um vírus letal da linguagem.
Mas tanto Oswald como Almada tinham como mediadora polissêmica uma cultura barroca que lhes era anterior e na qual estavam sub-repticiamente mergulhados. Cultura com que os portugueses de Seiscentos vestiram os índios nus, mas também com que a antropofagia do século 20 despiu os índios nus, como princípio crítico e de auto-identificação, porque "os antropófagos não possuem questões de ronha pessoal: -é a carne, é a idéia".
Vestir e despir são assim um movimento dialético, em que o vestido e o despido se espelham, trocando reciprocamente de situação, tal como o corpo pintado e o corpo por pintar, tal como inseparáveis são o rosto e a máscara.
Nos seus três momentos, a Primeira e a Segunda dentições em 1929 e a sua retomada teórica nos anos 50, em textos de Oswald de Andrade, como "A Crise da Filosofia Messiânica" e "A Marcha das Utopias", tanto os aspectos barrocos como os dialéticos se encontram entrecruzados, convergindo mais radical, inventiva e criticamente na Segunda Dentição e mais filosoficamente nos textos de 50.
É precisamente no texto "A Crise da Filosofia Messiânica" que surgem os termos da formulação dialética que reabrem a antropofagia para uma deglutição contemporânea. Diz Oswald: "Porque, enfim, é a seguinte a formulação essencial do homem como problema e como realidade:
1º termo: tese - o homem natural
2º termo: antítese - o homem civilizado
3º termo: síntese - o homem natural tecnizado
Vivemos em estado de negatividade, eis o real. Vivemos no segundo termo dialético da nossa equação fundamental".
O que certamente agora se propõe é a passagem para o terceiro termo, ou seja, o homem natural tecnizado, ou seja, a recuperação das características primitivas do homem sintetizadas com as propriedades técnicas resultantes da civilização. Ou seja, o homem arquetípico e antegráfico de Almada, que sabia ver apenas com os olhos, mas agora equipado ciberneticamente. Ou o índio ritualmente antropófago, biológico, que não tinha o verbo ser, de Oswald, mas agora em mágica metamorfose virtual e digital. Porque ambos se equivalem, como o nu e o vestido, numa única síntese transbarroca que é aquela em que estamos agora, apenas, a começar a viver.
Síntese essa que a ciência e a tecnologia têm vindo a possibilitar, realizando tentativamente alguns dos mitos fundamentais do homem, como extensões do desenrolar da busca do conhecimento do mundo e do universo, conhecimento esse que fundamenta e impulsiona a atividade científica. Assim, com o mito de Ícaro, que personifica o desejo humano de voar e de vencer a gravidade terrestre, cuja resposta tecnológica é a aviação e as viagens interplanetárias. Ou o mito de Hermes, no desenvolvimento, aceleração e sofisticação dos meios de transporte e de comunicações, a ponto de hoje vivermos envoltos numa "informoesfera". Ou a emulação do dom da ubiquidade, só reservada para os deuses e hoje começando a estar ao alcance do homem por meio da teleinteratividade e que no futuro provavelmente se realizará pelo teletransporte múltiplo. Ou a impenetrabilidade física dos corpos, que os impede de ocuparem simultaneamente o mesmo espaço e que a holografia e a realidade virtual possibilitam e simulam. Ou a tecnologia da clonagem, que pode ser interpretada como o começo (ainda apenas vislumbrado) da solução da inevitabilidade da morte, por intermédio de sucessivos indivíduos com o mesmo DNA, com vista a uma vida eterna.
É este homem-síntese, antropófago-virtual, cibernético-utópico, resultante de uma mestiçagem genético-espiritual que representa hoje, para nós, o primitivo tecnizado previsto por Oswald de Andrade. Assim seja ele, como arquétipo de si próprio, capaz de exorcismar os aspectos desastrosos e autodestruidores que as tecnologias também em si comportam. Porque isso é essencial para que não "caia o céu sobre nós todos, índios e não índios", esmagando-nos catastroficamente como, com plena razão, nos avisa o índio David Yanomani.


E.M. de Melo e Castro é poeta e ensaísta português, autor de "Poligonia do Soneto" e "Re-Camões", entre outros.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.