São Paulo, domingo, 1 de novembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS
Primeiro volume das obras completas inclui as coletâneas fundamentais de contos de Jorge Luis Borges
Versões da eternidade

ROBERTO VENTURA
especial para a Folha

Jorge Luis Borges anuncia o fim da literatura: "A literatura é uma arte que sabe profetizar aquele tempo em que já terá emudecido". Incapaz de escrever longos relatos, preferiu tratar de livros e autores imaginários, como Pierre Menard, que teria tentado, em pleno século 20, copiar letra por letra o "Dom Quixote", até chegar a uma versão fragmentária e mais sutil do romance de Cervantes. Criou, com esse artifício, aquilo que Italo Calvino chamou de "literatura elevada ao quadrado".
As "Obras Completas" do escritor argentino, cujo primeiro volume acaba de ser publicado pela Editora Globo, fascinam pelo jogo incessante de questões abertas. "A certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos fantasmagoriza", escreve Borges, morto em Genebra em 1986. Cobrindo o período de 1923 a 1949, o volume reúne seus primeiros livros de poesia, alguns estudos e ensaios, e os três livros de contos -"História Universal da Infâmia", "Ficções" e "O Aleph"- que o consagrariam como escritor.
Endeusado por John Barth como o criador da literatura pós-moderna, Borges é o maior ficcionista latino-americano deste século, apesar de nunca ter ganho o Prêmio Nobel. Foi homenageado pelo filósofo Michel Foucault, em "As Palavras e as Coisas" (1966), como o inventor de uma absurda classificação dos animais atribuída a uma enciclopédia chinesa. Umberto Eco também lhe rendeu tributo com o o bibliotecário Jorge no mosteiro medieval do romance "O Nome da Rosa" (1980).
Criou, como Kafka, Joyce e Beckett, também esquecidos pelo Nobel, um universo simbólico poderoso, em que os labirintos e as bibliotecas ameaçam o leitor como espelhos do mundo, que revelam a mais terrível das prisões: o tempo circular, linha infinita que se dobra sobre si mesma, tirando do homem qualquer ilusão de história ou esperança de redenção.
Borges viveu e morreu em uma biblioteca de livros infinitos. A biblioteca do pai foi o acontecimento mais importante de sua existência. Com milhares de volumes em prateleiras envidraçadas, dava para um jardim cercado por grades: "Às vezes penso que nunca me perdi fora daquela biblioteca". Foi o pai que lhe deu as primeiras lições de filosofia, como os paradoxos do grego Zenão -a corrida entre Aquiles e a tartaruga, o vôo imóvel da flecha-, que geraram, junto com a teoria matemática dos conjuntos de Georg Cantor, sua visão do infinito.
Advogado e escritor frustrado, o pai tinha sobretudo livros ingleses, romances de aventuras, algumas enciclopédias e "As Mil e Uma Noites", na versão sensual de Richard Burton, obra proibida que lia escondido em cima do terraço e que lhe forneceu o toque fantástico do Oriente, com a vertigem dos contos que se ramificam em outros contos, um dos motivos centrais de sua ficção.
Outra leitura interdita era o "Martín Fierro", poema de José Hernández sobre um herói desertor que, segundo a mãe, só servia "para desordeiros" e "nem era sobre gaúchos de verdade". Leu ainda em inglês o "Dom Quixote", que lhe pareceu muito mais verdadeiro do que o original de Cervantes.
Seu primeiro emprego foi como assistente em uma biblioteca municipal, onde passou nove anos infelizes. Após cumprir sua tarefa diária de catalogação, recolhia-se ao porão, em que escreveu alguns de seus contos mais conhecidos, como "A Loteria em Babilônia" e "As Ruínas Circulares", reunidos em "Ficções" (1944). Já conhecido como escritor, foi chamado por um colega que descobriu, em uma enciclopédia, um certo Jorge Luis Borges que tinha, para sua surpresa, o mesmo nome e data de nascimento.
"A Biblioteca de Babel", um dos relatos de "Ficções", é uma visão delirante de uma biblioteca sem fim, em que ampliou o pesadelo daquela triste repartição de subúrbio. Imaginou uma biblioteca-labirinto, Livro dos livros, sonhado pelos místicos e esboçado pelo poeta francês Mallarmé. Situada em Babel, lugar nenhum para o qual convergem todas as línguas, contém a totalidade dos livros, reais ou virtuais, até os mais incompreensíveis, produzidos a partir da combinação das letras do alfabeto. "A Biblioteca", escreve Borges, "é ilimitada e periódica". Foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires em 1955, depois da queda do ditador Perón. Frequentara na juventude a biblioteca, para ler artigos da "Enciclopédia Britânica", redigidos por escritores como Macaulay e De Quincey, modelos de seu estilo sintético e preciso. Tornou-se o guardião de um paraíso de 800 mil volumes, quando a cegueira hereditária já o tinha condenado a viver nas sombras e a retornar ao poema e às formas clássicas do verso. No "Poema de los Dones", falou da "magnífica ironia" de Deus, que lhe deu ao mesmo tempo "los libros y la noche".
Como muitos escritores latino-americanos, ingressou na literatura mundial em francês, com o lançamento em 1951 de "Ficções" na coleção "La Croix du Sud", dirigida por Roger Caillois. O reconhecimento internacional chegaria dez anos depois, ao receber, junto com o irlandês Samuel Beckett, o Prêmio Formentor.

Acerto de contas
Suas "Obras Completas", coordenadas no Brasil por Eliana Sá e com assessoria do professor Jorge Schwartz, seguem rigorosamente a edição espanhola da Emecé. Além de seus melhores livros de contos, o primeiro volume permite mergulhar nas raízes de um outro Borges, menos conhecido do que o criador universal: o escritor que se embate, como mostrou Davi Arrigucci Jr. em "Enigma e Comentário" (Companhia das Letras, 1987), com os mitos fundadores da nação argentina.
Borges se distancia, nos ensaios de "Evaristo Carriego" (1930) e de "Discussão" (1932), dos heróis briguentos da cultura portenha. Criticou poetas gauchescos, como José Hernández, escritor urbano que cultivara de forma artificial a linguagem popular dos pampas. Ironizou ainda o tango dos anos 20 e 30, que transformara a luta em música, com a "função compensadora" de "dar aos argentinos a certeza de terem sido valentes".
Adotou, no ensaio "O Escritor Argentino e a Tradição", idéias próximas às defendidas por Machado de Assis, em "Instinto de Nacionalidade" (1873), para quem a literatura se define mais pelo tratamento do que pela escolha do tema. Os escritores sul-americanos devem lançar mão, segundo Borges, de todos os temas da cultura ocidental: "Nosso patrimônio é o universo".
A ficção de Borges emerge desses primeiros ensaios, em que acertou contas com as tradições locais, para dar o salto rumo à releitura dos clássicos e à reescrita da literatura universal. Afastou-se do heroísmo portenho ao criar, em "História Universal da Infâmia" (1935), uma galeria extravagante de anti-heróis sem honra, apresentados em breve relatos descontínuos, que incluem desde o pistoleiro Billy the Kid até terríveis piratas chineses e gangsteres judeus de Nova York.
Juntou à veia erudita o gosto pelos romances de aventura e pelo conto policial, inaugurado por Edgar Allan Poe. Conta, em "A Morte e a Bússola", como a investigação de uma série de assassinatos, cometidos para formar um labirinto de quatro pontas, leva um detetive ao encontro de seu matador. Antes de receber o tiro fatal, o investigador critica a armadilha em que foi pego pelo excesso de linhas: o melhor labirinto é aquele "que se compõe de uma única linha reta", invisível e incessante.
Borges tem uma outra face: o Dédalos, da mitologia grega, construtor do labirinto que serviu de prisão ao Minotauro de Creta, monstro de corpo humano e cabeça de touro, alimentado pelo sacrifício anual de sete jovens e sete virgens. Assume, no conto "A Casa de Astérion", a voz do Minotauro, que aguarda patético a vinda de Teseu, o herói que o libertará, pela morte, de sua existência solitária e sangrenta.
Labirinto e minotauro, imagens recorrentes, se condensam em uma única esfera microscópica: "O Aleph". Relato emblemático, que dá título ao livro de 1949, é uma das mais preciosas miniaturas de Borges, que deu vazão àquilo que seu amigo Julio Cortázar chamou, em "Del Cuento Breve y sus Arredores", de perfeição esférica do conto: "Máquina infalível destinada a cumprir sua missão narrativa com a máxima economia dos meios".
Primeira letra do alfabeto hebreu, que se tornaria o alfa dos gregos, o Aleph era representado, enquanto hieroglifo, por uma cabeça de touro. Indica, na matemática, o expoente do número infinito que engloba todos os outros. Parodiando a "Divina Comédia" de Dante Alighieri, que desceu ao Inferno em busca da amada, o narrador do conto descobre o Aleph, ponto fulgurante que contém todos os lugares da terra, ao se agachar no porão escuro de uma casa em Buenos Aires, no final de outubro de 1941.
Versão espacial da eternidade, o Aleph inclui todas as letras e números: é o próprio universo. Pergunta-se: "Como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca?". Releitura de toda literatura, a escrita de Borges é sua resposta.


Roberto Ventura é professor de teoria literária e literatura comparada na USP e autor de "Estilo Tropical" (Companhia das Letras).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.