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LIVROS
Primeiro volume das obras completas inclui as coletâneas fundamentais de
contos de Jorge Luis Borges
Versões da eternidade
ROBERTO VENTURA
especial para a Folha
Jorge Luis Borges anuncia o fim
da literatura: "A literatura é uma
arte que sabe profetizar aquele
tempo em que já terá emudecido". Incapaz de escrever longos
relatos, preferiu tratar de livros e
autores imaginários, como Pierre
Menard, que teria tentado, em
pleno século 20, copiar letra por
letra o "Dom Quixote", até chegar a uma versão fragmentária e
mais sutil do romance de Cervantes. Criou, com esse artifício, aquilo que Italo Calvino chamou de
"literatura elevada ao quadrado".
As "Obras Completas" do escritor argentino, cujo primeiro
volume acaba de ser publicado pela Editora Globo, fascinam pelo
jogo incessante de questões abertas. "A certeza de que tudo está
escrito nos anula ou nos fantasmagoriza", escreve Borges, morto
em Genebra em 1986. Cobrindo o
período de 1923 a 1949, o volume
reúne seus primeiros livros de
poesia, alguns estudos e ensaios, e
os três livros de contos -"História Universal da Infâmia", "Ficções" e "O Aleph"- que o consagrariam como escritor.
Endeusado por John Barth como
o criador da literatura pós-moderna, Borges é o maior ficcionista latino-americano deste século, apesar de nunca ter ganho o Prêmio
Nobel. Foi homenageado pelo filósofo Michel Foucault, em "As Palavras e as Coisas" (1966), como o
inventor de uma absurda classificação dos animais atribuída a uma
enciclopédia chinesa. Umberto
Eco também lhe rendeu tributo
com o o bibliotecário Jorge no
mosteiro medieval do romance
"O Nome da Rosa" (1980).
Criou, como Kafka, Joyce e Beckett, também esquecidos pelo Nobel, um universo simbólico poderoso, em que os labirintos e as bibliotecas ameaçam o leitor como
espelhos do mundo, que revelam a
mais terrível das prisões: o tempo
circular, linha infinita que se dobra sobre si mesma, tirando do
homem qualquer ilusão de história ou esperança de redenção.
Borges viveu e morreu em uma
biblioteca de livros infinitos. A biblioteca do pai foi o acontecimento mais importante de sua existência. Com milhares de volumes em
prateleiras envidraçadas, dava para um jardim cercado por grades:
"Às vezes penso que nunca me
perdi fora daquela biblioteca".
Foi o pai que lhe deu as primeiras
lições de filosofia, como os paradoxos do grego Zenão -a corrida
entre Aquiles e a tartaruga, o vôo
imóvel da flecha-, que geraram,
junto com a teoria matemática dos
conjuntos de Georg Cantor, sua
visão do infinito.
Advogado e escritor frustrado, o
pai tinha sobretudo livros ingleses, romances de aventuras, algumas enciclopédias e "As Mil e
Uma Noites", na versão sensual
de Richard Burton, obra proibida
que lia escondido em cima do terraço e que lhe forneceu o toque
fantástico do Oriente, com a vertigem dos contos que se ramificam
em outros contos, um dos motivos
centrais de sua ficção.
Outra leitura interdita era o
"Martín Fierro", poema de José
Hernández sobre um herói desertor que, segundo a mãe, só servia
"para desordeiros" e "nem era
sobre gaúchos de verdade". Leu
ainda em inglês o "Dom Quixote", que lhe pareceu muito mais
verdadeiro do que o original de
Cervantes.
Seu primeiro emprego foi como
assistente em uma biblioteca municipal, onde passou nove anos infelizes. Após cumprir sua tarefa
diária de catalogação, recolhia-se
ao porão, em que escreveu alguns
de seus contos mais conhecidos,
como "A Loteria em Babilônia" e
"As Ruínas Circulares", reunidos
em "Ficções" (1944). Já conhecido como escritor, foi chamado por
um colega que descobriu, em uma
enciclopédia, um certo Jorge Luis
Borges que tinha, para sua surpresa, o mesmo nome e data de nascimento.
"A Biblioteca de Babel", um
dos relatos de "Ficções", é uma
visão delirante de uma biblioteca
sem fim, em que ampliou o pesadelo daquela triste repartição de
subúrbio. Imaginou uma biblioteca-labirinto, Livro dos livros, sonhado pelos místicos e esboçado
pelo poeta francês Mallarmé. Situada em Babel, lugar nenhum para o qual convergem todas as línguas, contém a totalidade dos livros, reais ou virtuais, até os mais
incompreensíveis, produzidos a
partir da combinação das letras do
alfabeto. "A Biblioteca", escreve
Borges, "é ilimitada e periódica".
Foi nomeado diretor da Biblioteca
Nacional de Buenos Aires em
1955, depois da queda do ditador
Perón. Frequentara na juventude a
biblioteca, para ler artigos da
"Enciclopédia Britânica", redigidos por escritores como Macaulay
e De Quincey, modelos de seu estilo sintético e preciso. Tornou-se o
guardião de um paraíso de 800 mil
volumes, quando a cegueira hereditária já o tinha condenado a viver nas sombras e a retornar ao
poema e às formas clássicas do
verso. No "Poema de los Dones",
falou da "magnífica ironia" de
Deus, que lhe deu ao mesmo tempo "los libros y la noche".
Como muitos escritores latino-americanos, ingressou na literatura mundial em francês, com o
lançamento em 1951 de "Ficções"
na coleção "La Croix du Sud", dirigida por Roger Caillois. O reconhecimento internacional chegaria dez anos depois, ao receber,
junto com o irlandês Samuel Beckett, o Prêmio Formentor.
Acerto de contas
Suas "Obras Completas", coordenadas no Brasil por Eliana Sá e
com assessoria do professor Jorge
Schwartz, seguem rigorosamente
a edição espanhola da Emecé.
Além de seus melhores livros de
contos, o primeiro volume permite mergulhar nas raízes de um outro Borges, menos conhecido do
que o criador universal: o escritor
que se embate, como mostrou Davi Arrigucci Jr. em "Enigma e Comentário" (Companhia das Letras, 1987), com os mitos fundadores da nação argentina.
Borges se distancia, nos ensaios
de "Evaristo Carriego" (1930) e
de "Discussão" (1932), dos heróis briguentos da cultura portenha. Criticou poetas gauchescos,
como José Hernández, escritor urbano que cultivara de forma artificial a linguagem popular dos pampas. Ironizou ainda o tango dos
anos 20 e 30, que transformara a
luta em música, com a "função
compensadora" de "dar aos argentinos a certeza de terem sido
valentes".
Adotou, no ensaio "O Escritor
Argentino e a Tradição", idéias
próximas às defendidas por Machado de Assis, em "Instinto de
Nacionalidade" (1873), para
quem a literatura se define mais
pelo tratamento do que pela escolha do tema. Os escritores sul-americanos devem lançar mão, segundo Borges, de todos os temas
da cultura ocidental: "Nosso patrimônio é o universo".
A ficção de Borges emerge desses
primeiros ensaios, em que acertou
contas com as tradições locais, para dar o salto rumo à releitura dos
clássicos e à reescrita da literatura
universal. Afastou-se do heroísmo
portenho ao criar, em "História
Universal da Infâmia" (1935),
uma galeria extravagante de anti-heróis sem honra, apresentados
em breve relatos descontínuos,
que incluem desde o pistoleiro
Billy the Kid até terríveis piratas
chineses e gangsteres judeus de
Nova York.
Juntou à veia erudita o gosto pelos romances de aventura e pelo
conto policial, inaugurado por
Edgar Allan Poe. Conta, em "A
Morte e a Bússola", como a investigação de uma série de assassinatos, cometidos para formar um labirinto de quatro pontas, leva um
detetive ao encontro de seu matador. Antes de receber o tiro fatal, o
investigador critica a armadilha
em que foi pego pelo excesso de
linhas: o melhor labirinto é aquele
"que se compõe de uma única linha reta", invisível e incessante.
Borges tem uma outra face: o
Dédalos, da mitologia grega, construtor do labirinto que serviu de
prisão ao Minotauro de Creta,
monstro de corpo humano e cabeça de touro, alimentado pelo sacrifício anual de sete jovens e sete virgens. Assume, no conto "A Casa
de Astérion", a voz do Minotauro, que aguarda patético a vinda
de Teseu, o herói que o libertará,
pela morte, de sua existência solitária e sangrenta.
Labirinto e minotauro, imagens
recorrentes, se condensam em
uma única esfera microscópica:
"O Aleph". Relato emblemático,
que dá título ao livro de 1949, é
uma das mais preciosas miniaturas de Borges, que deu vazão àquilo que seu amigo Julio Cortázar
chamou, em "Del Cuento Breve y
sus Arredores", de perfeição esférica do conto: "Máquina infalível
destinada a cumprir sua missão
narrativa com a máxima economia dos meios".
Primeira letra do alfabeto hebreu, que se tornaria o alfa dos
gregos, o Aleph era representado,
enquanto hieroglifo, por uma cabeça de touro. Indica, na matemática, o expoente do número infinito que engloba todos os outros.
Parodiando a "Divina Comédia"
de Dante Alighieri, que desceu ao
Inferno em busca da amada, o
narrador do conto descobre o
Aleph, ponto fulgurante que contém todos os lugares da terra, ao se
agachar no porão escuro de uma
casa em Buenos Aires, no final de
outubro de 1941.
Versão espacial da eternidade, o
Aleph inclui todas as letras e números: é o próprio universo. Pergunta-se: "Como transmitir aos
outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal
abarca?". Releitura de toda literatura, a escrita de Borges é sua resposta.
Roberto Ventura é professor de teoria literária
e literatura comparada na USP e autor de "Estilo
Tropical" (Companhia das Letras).
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