São Paulo, domingo, 02 de agosto de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um jornalista no front

EUCLYDES FOI TRATADO COM PRIVILÉGIOS ENTRE OS REPÓRTERES DE CANUDOS, VIAJOU COMO ADIDO MILITAR E TEVE DIREITO ATÉ A UM ORDENANÇA

ESPECIAL PARA A FOLHA

Euclydes da Cunha colaborou para jornais desde o final do Segundo Reinado. Mas foi com o advento da República que passou a escrever de forma mais regular nos periódicos da capital federal e principalmente no "Estado de S. Paulo". O maior conjunto de reportagens tratou da Guerra de Canudos. Até então, Euclydes era um engenheiro que trabalhava para o governo paulista e que tinha ficado conhecido por ter sido expulso da Escola Militar em 1888.
Entre março e outubro de 1897, publicou 34 artigos e reportagens em "O Estado de S. Paulo" tratando do conflito. O primeiro a 14 de março. Deu o título de "A Nossa Vendeia" [em referência à região que defendia a monarquia e resistiu à Revolução Francesa], imagem que não era nova: tinha sido utilizada em outro artigo, publicado em 1892, quando comentava o manifesto dos 13 generais contra a permanência de Floriano Peixoto na Presidência da República.
Não fez qualquer referência aos graves acontecimentos ocorridos no Rio de Janeiro e em São Paulo, logo após a chegada das notícias da derrota da terceira expedição: jornais foram incendiados e saqueados e o coronel Gentil de Castro foi assassinado (em "Os Sertões", Euclydes descreve esses acontecimentos, contudo omite o assassinato do coronel).
Naquele artigo, diferentemente de outros jornalistas, buscou as raízes da formação de Canudos e dos sertanejos, estes ainda descritos como "um tipo etnologicamente indefinido".
Só voltou ao tema quatro meses depois, quando a quarta expedição, comandada pelo general Artur Oscar, cercava Canudos com milhares de soldados. Tudo indica que aproveitou para se preparar para a viagem e conseguir fazer parte da comitiva que levaria o marechal Carlos Machado Bittencourt, recém-nomeado ministro da Guerra, para Monte Santo, no sertão baiano, de onde organizaria a linha de abastecimento para as tropas que estavam combatendo em Canudos.
Diferentemente de outros jornalistas que cobriram o conflito (cerca de uma dúzia), Euclydes foi como adido do Estado-Maior do ministro da Guerra. Isso facilitou sua viagem e inclusive a curta estada (duas semanas) em Canudos, onde teve até um ordenança, concedido pelo general Artur Oscar, caso único entre os jornalistas.

A aventura
Entre a partida do Rio de Janeiro e a permanência em Salvador, foram publicados 11 artigos. Aproveitou para pesquisar sobre o sertão, a política baiana e a figura de Antônio Conselheiro, percorreu arquivos, visitou redações de jornais, conversou com intelectuais, foi aos hospitais onde estavam os feridos da guerra.
A melhor reportagem feita em Salvador foi a do dia 18 de agosto. Entrevistou um jaguncinho -expressão pela qual ficaram conhecidos as crianças e os adolescentes trazidos prisioneiros de Canudos- que veio para a capital baiana trazido pelo coronel Carlos Teles. Chamava-se Agostinho.
O garoto de 14 anos possibilitou que o jornalista pudesse conhecer detalhes da vida cotidiana do "arraial sinistro". Para sua surpresa, o garoto informou que o Conselheiro não fazia milagres e negou que ele assegurasse ressuscitar os sertanejos mortos.
O líder de Canudos só prometia "salvar a alma". Não é de estranhar que o escritor de "Os Sertões" tenha suprimido Agostinho de seu livro. Afinal, salvar a alma não tinha nada de messiânico, nem de fanatismo: era parte do cristianismo tradicional sertanejo.
Registrou inúmeros dados e desenhou croquis em uma caderneta, sempre na expectativa de partir para Canudos.
No trajeto entre Salvador e Canudos, escreveu 13 artigos. Demonstrava satisfação pelo conhecimento da natureza do sertão: "Entrei pela primeira vez nas caatingas, satisfazendo uma curiosidade ardente, longamente alimentada".
Chegou ao acampamento das tropas que cercavam Canudos no dia 16 de setembro, 43 dias depois da partida da capital federal. De lá escreveu sete reportagens. Estava doente.
Ceou várias vezes com o general Artur Oscar. Reencontrou antigos companheiros da Escola Militar. Caminhou pela região, participou de interrogatórios de conselheiristas, desenhou maquetes do arraial e do entorno e efetuou inúmeras anotações.
O jornalista estava sendo substituído pelo escritor. Deixou de noticiar fatos importantíssimos, como a rendição de Antônio Beatinho, a 2 de outubro, a intensificação dos combates e a queda do arraial, a 5 de outubro.
Nota-se, consultando os exemplares de "O Estado de S. Paulo", que o jornal foi obrigado a transcrever o noticiário dos jornais cariocas, na ausência de artigos de seu correspondente. Em parte, devido ao agravamento do estado de saúde do jornalista, o que o obrigou a se dirigir a Monte Santo antes do término da guerra.
As reportagens de Euclydes da Cunha, conhecidas como "Diário de uma Expedição", não tiveram repercussão. Só ficaram efetivamente conhecidas quando foram editadas em forma de livro, em 1939, pela editora José Olympio, com uma longa introdução de Gilberto Freyre.
Os principais jornais brasileiros eram os cariocas, como "Gazeta de Notícias", "Jornal do Commercio", "A Notícia" e "O País". Estes enviaram correspondentes para o teatro de guerra. E foram aqueles que influenciaram a opinião pública. Um deles, Manoel Benício, do "Jornal do Commercio", teve, inclusive, de regressar para a capital federal após fazer duras críticas ao comandante da quarta expedição.
(MARCO ANTONIO VILLA)


Texto Anterior: Saiba+
Próximo Texto: Visões de Canudos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.