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Micro/Macro
Inteligência artificial segundo Spielberg
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Uma das questões teológicas mais
conhecidas é: "Se Deus é perfeito,
por que sentiu a necessidade de criar
Adão e Eva?" A resposta, ou ao menos
uma delas, é que Deus criou o homem e a
mulher para que eles pudessem amá-lo.
Nesse caso, Deus revela uma vaidade um
tanto imperfeita e embaraçosa, que dá
pano para várias mangas eclesiásticas.
Essa pergunta, sem o último comentário,
aparece no início do novo filme de Steven Spielberg, "Inteligência Artificial". O
ator William Hurt representa o cientista
genial que desenvolve um método para
codificar emoções em redes neurais implantadas em robôs que são externamente indistinguíveis de seres humanos.
Em outras palavras, o filme trata da possibilidade de criarmos máquinas que,
para todos os propósitos, se comportam
como seres humanos e se assemelham a
eles, nossos próprios Adão e Eva.
Se, por um lado, é difícil entender a
motivação divina em criar os homens,
no nosso caso a motivação é trivial: nós
somos seres vaidosos, com uma profunda necessidade de amar e ser amados. E,
ainda mais importante, nós somos mortais, e nossa mortalidade é causa de grande sofrimento. De certa forma, a morte é
o triunfo final da Natureza sobre a criatividade humana -a menos que, claro, a
ciência possa driblar a morte.
Esse é, essencialmente, o tema do filme
de Spielberg. As máquinas que amam e
sonham criadas pelo cientista são cópias
idênticas de seu filho já falecido. Se não
nos é possível perpetuar a vida, podemos
ao menos imitá-la. O problema é que o
cientista se esqueceu de um detalhe fundamental: as máquinas que amam e sonham são essencialmente imortais, condenadas a sofrer a perda dos entes amados para sempre. Na ânsia de amenizar a
dor de sua perda, o cientista egoísta condena a sua criação a sofrer da mesma
dor. E sem o alívio que vem com a morte.
O filme nos alerta para vários perigos
futuros, todos consequência do uso cego
e desenfreado da ciência. Grande parte
do mundo, em particular as regiões costeiras, jaz submersa pelo aumento do nível do mar provocado pelo efeito estufa;
a recriação de Nova York parcialmente
sob as águas é tecnicamente espetacular.
A narrativa do filme é estruturada como
um conto de fadas, traçando as aventuras de um robô-criança capaz de amar e
sonhar, cujo maior desejo é, como Pinóquio, tornar-se um menino de verdade.
Conforme fica claro no filme, se os humanos são capazes de criar máquinas
que sentem e amam, não é óbvio que eles
serão também capazes de amá-las. As
máquinas não são vistas como animais
de estimação, mas como uma ameaça à
hegemonia dos humanos na Terra: afinal, se máquinas imortais e inteligentes
podem existir, qual é a vantagem de preservar a espécie humana? A criação pode
vir a dominar o criador, suplantando a
necessidade de sua existência, numa repetição do tema já abordado em "Frankenstein", escrito no início do século 19.
A crise entre criador e criatura surge
quando o "monstro" pede ao seu criador
por uma companheira. Apavorado com
a possibilidade de criar uma raça de
monstros que possa suplantar a raça humana, o dr. Frankenstein nega-se a ajudar sua criatura. Como o cientista no filme de Spielberg, o pobre doutor esqueceu que a solidão é a maior punição da
imortalidade.
Estamos ainda longe de criar máquinas
capazes de pensar. O cérebro humano
não funciona como um computador comum, com uma central única de processamento de dados. A origem do que chamamos de mente, ou de consciência,
permanece ainda um mistério. Mas nossa ignorância atual não é uma garantia
para o futuro: possivelmente, o desenvolvimento das ciências cognitivas nas
próximas décadas, acoplado ao desenvolvimento da capacidade computacional dos microprocessadores, irá criar
uma nova geração de máquinas que se
aproximarão cada vez mais dos robôs
sensíveis de Spielberg.
Mesmo que o filme deixe várias questões em aberto, ele nos convida a uma reflexão sobre o que significa criarmos cópias imortais de nós mesmos. Talvez seja
uma boa idéia criarmos máquinas que
envelheçam e morram. Caso contrário,
nossas criações irão se tornar divinas,
imortais e perfeitas. E seremos nós as entidades supérfluas.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (Estados Unidos),
e autor do livro "A Dança do Universo"
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