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São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

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PREMISSA DO MODERNISMO E DA SUBJETIVIDADE, O TEMPO CEDEU A VEZ À EXPERIÊNCIA PÓS-MODERNA DA FOTOGRAFIA, DAS CIDADES E DA GLOBALIZAÇÃO

O ESPAÇO, A FRONTEIRA FINAL

Flávio Florido - 22.mar.2002/Folha Imagem
Obra do artista norte-americano Jeff Koons exposta na Bienal de São Paulo de 2002


O que virá depois do fim da história? Não sendo previsto nenhum reinício, só pode acontecer o fim de outra coisa. Mas o modernismo já terminou algum tempo atrás e, com ele, presume-se, o próprio tempo, já que foi largamente especulado que o espaço tomaria o lugar do tempo no esquema ontológico geral das coisas. No mínimo, o tempo se tornara uma não-pessoa, e as pessoas deixaram de escrever sobre ele. Os romancistas e poetas desistiram da empreitada, partindo da premissa inteiramente plausível de que o tema já tinha sido largamente coberto por Proust, Mann, Virginia Woolf e T.S. Eliot e oferecia poucas chances adicionais de avanço literário. Os filósofos também o abandonaram, baseados no argumento de que, embora Bergson continuasse a ser letra morta, Heidegger ainda publicava um volume póstumo por ano sobre o assunto. Quanto à montanha de literatura secundária em ambas as disciplinas, voltar a escalá-la parecia uma coisa bastante antiquada a fazer com a vida. ""Was aber war die Zeit?" O que é o tempo? Um segredo, insubstancial e onipresente. Um pré-requisito do mundo externo, um movimento entremeado e fundido com corpos que existem e se movem no espaço. Mas será que não haveria tempo se não houvesse movimento? Não haveria movimento se não houvesse tempo? Que pergunta! O tempo é uma função do espaço? Ou vice-versa? Ou os dois são idênticos? Pergunta ainda maior! O tempo é ativo por natureza -é como um verbo, à medida que tanto "amadurece" quanto "traz à tona". E o que ele traz à tona? A transformação. O agora não é o então, o aqui não é o lá -pois, em ambos os casos, há um movimento separando as duas coisas.

Ascensão da arquitetura
Mas, como medimos o tempo por um movimento circular fechado em si mesmo, poderíamos igualmente bem dizer que seu movimento e sua transformação são o descanso e a estagnação, pois o então se repete constantemente no agora, o lá, no aqui... Hans Castorp [protagonista do romance "A Montanha Mágica", de Thomas Mann] refletia continuamente sobre questões como essa.
Seja como for, nem a fenomenologia nem Thomas Mann ofereceram pontos de partida promissores para qualquer coisa que pudesse incendiar a imaginação. O que o fazia, porém, sem dúvida alguma, era a alternativa espacial. As estatísticas relativas ao volume de livros sobre o espaço são tão alarmantes quanto o índice de natalidade de seu inimigo hereditário.
A ascensão da cotação intelectual da arquitetura acompanhou a queda das "belles lettres" como uma sombra cada vez mais comprida; a inauguração de qualquer prédio assinado por um arquiteto conhecido atraía mais visitantes e mais atenção da mídia do que o lançamento de uma tradução do mais recente ganhador desconhecido do Prêmio Nobel. Eu gostaria de assistir a uma partida entre Seamus Heaney e Frank O. Gehry, mas pelo menos é certo que os museus pós-modernos ganharam popularidade no mínimo igual à dos novos estádios esportivos, igualmente pós-modernos, e que ninguém mais lê os ensaios de Valéry, que falava do espaço lindamente, desde um ponto de vista temporal, mas em sentenças longas. Assim, a máxima segundo a qual o tempo era a dominante do moderno (ou do modernismo) e, o espaço, do pós-moderno significa algo ao mesmo tempo temático e empírico: o que fazemos, de acordo com os jornais e as estatísticas da Amazon e como chamamos aquilo que estamos fazendo. Não vejo como podemos deixar de identificar aqui uma transformação marcadora de época, e essa transformação afeta os investimentos (galerias de artes, encomendas de edifícios) tanto quanto afeta as coisas mais etéreas às quais também se dá o nome de valores. Ela pode ser constatada, por exemplo, naquilo que aconteceu com o que costumava ser chamado de "système des beaux arts" ou a hierarquia do ideal estético. No contexto mais antigo (modernista), o ápice era ocupado pela poesia ou a linguagem poética, cuja "pureza" e autonomia estética davam um exemplo a ser seguido pelas outras artes e inspiraram a paradigmática teorização da pintura feita por Clement Greenberg. O "sistema" do pós-moderno (que afirma não possuir sistema) não é codificado e é mais difícil de detectar, mas desconfio de que ele culmina na experiência do espaço da própria cidade -a cidade renovada e pós-urbana, aburguesada, as novas multidões e massas das novas ruas- e também na experiência de uma música que foi espacializada por seus contextos de apresentação e também por seus sistemas de distribuição: as caixas de som e os walkmans que transformam o consumo do som musical numa produção e apropriação do espaço sonoro enquanto tal.

Segredos de um e outro
Quanto à imagem, sua função como matéria-prima onipresente de nosso ecossistema cultural exigiria a análise da promoção da fotografia -de agora em diante chamada de fotografia pós-moderna- de parente pobre da pintura em tela para uma nova e importante forma de arte nesse novo sistema. Mas tais descrições são claramente predicadas sobre o dualismo operativo, a alegada existência histórica das duas alternativas. Os modernos eram obcecados pelo segredo do tempo, os pós-modernos, pelo segredo do espaço, sendo o "segredo", sem dúvida, aquilo que André Malraux descrevia como o "absoluto".
Podemos observar uma derrapagem curiosa nessas pesquisas, mesmo quando a filosofia coloca suas mãos sobre elas. Elas começam por pensar que querem saber o que é o tempo e terminam procurando, mais modestamente, descrevê-lo por meio do que Whitman chamou de "experimentos de linguagem" nos diversos meios de comunicação. Assim, temos "versões" do tempo apresentadas por autores e outros que variam de Gertrude Stein a Husserl, de Mahler a Le Corbusier (que enxergava suas estruturas estáticas como "trajetórias").
Não podemos afirmar que nenhuma dessas tentativas seja menos equivocada do que os fracassos mais óbvios do cubismo analítico ou da "estética relativa" de Siegfried Giedeon. Talvez tudo que precisamos dizer esteja contido no epitáfio lacônico feito por Derrida sobre a filosofia aristotélica da temporalidade: "Em certo sentido, sempre é tarde demais para falar do tempo".
Será que podemos fazer melhor com o espaço? O que está em jogo é diferente, é claro; o tempo rege o reino da interioridade, no qual se encontram tanto a subjetividade quanto a lógica, o privado e o epistemológico, a autoconsciência e o desejo. O espaço, como reino da exterioridade, inclui as cidades e a globalização, mas também as outras pessoas e a natureza. Não é tão evidente que a linguagem sempre caia sob a égide do tempo (damos nomes aos objetos do reino espacial, por exemplo), e, quanto à visão, a luz interior e o reflexo tanto literal quanto figurativo constituem categorias de introspeção conhecidas. De fato, por que separar as duas?

Fredric Jameson é professor de literaturas francesa e comparada na Universidade Duke (EUA). É autor de, entre outros livros, "Pós-Modernismo" e "O Inconsciente Político" (ambos pela ed. Ática). Este artigo foi publicado originalmente na "Critical Inquiry".
Tradução de Clara Allain.


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