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São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

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NOVO "ISMO" SURGIU PARA SUBSTITUIR O VAZIO INTELECTUAL DOS ANOS 90, MAS NÃO PASSOU DE UMA MODA NA ARTE, ARQUITETURA E LITERATURA

O CONCEITO QUE NUNCA EXISTIU

por Ciro Marcondes Filho

Pouco tempo atrás, o filósofo francês Jacques Poulain me revelou que ele próprio havia passado às mãos de Jean-François Lyotard, o "pai" do pós-modernismo francês, um livro de Arnold Gehlen que teria muito impressionado a Lyotard. Este tomou de Gehlen o conceito de "grandes idéias explicativas", que lhe serviu para elaborar sua conhecida teoria do fim dos metarrelatos. Mas a origem pode nem estar em Gehlen. Certa vez Günther Anders teria se recusado a apertar as mãos de Gehlen, no início dos anos 50, porque desconfiava da seriedade deste filósofo, inclusive de sua misteriosa sobrevivência durante o terror fascista. Anders assegurava que alguns conceitos que Gehlen expunha como originais, teria ele, Anders, ouvido direto da boca de seu fiel amigo, Bertolt Brecht, anos antes. Por essa lógica de concatenações somos levados a imaginar que Brecht já teria pensado nos "grandes metarrelatos" durante e, talvez mesmo, antes do fascismo. E isso não seria tão estranho se considerarmos que o primeiro uso do termo "pós-moderno" data do início dos anos 20, na Alemanha. Naturalmente, o contexto da época era outro e ainda não se propagava a ruína das idéias do moderno, mas algo já se sentia no ar: havia uma certa "intuição" pós-moderna. Os mais bem-pensantes já estariam, como numa "vanguarda" -termo visceralmente associado à modernidade-, sentindo que um grande bloco de idéias, visões de mundo e filosofias desmoronava como as torres gêmeas de Nova York. O mundo percebia a falência da modernidade, já esteticamente sugerida por Duchamp, só que ainda não tinha palavras para caracterizar o que estava acontecendo. O triste final desse tempo, que incorporou a filosofia das Luzes, seu discurso emancipatório, as fantasias antropocêntricas de sujeito, homem, história, verdade, progresso, evolução, totalidade e tantas outras farsas enganosas e totalitárias da época, que tragicamente vieram a dar em Auschwitz e Hiroshima, segregou um sumo amargo e nostálgico chamado "pós-moderno". Este não é exatamente uma época, um período ontologicamente determinado da história ou do pensamento, mas um final, ainda embebido na fonte da modernidade, só que ao contrário, invertido, destacando aquilo que é sua negação: o pastiche, a paródia, a nostalgia, a indeterminação, a fragmentação, a descanonização e tantos outros conceitos que viraram moda. Terry Eagleton reclama que não podemos ficar sem teoria, que, sem ela, não há vida reflexiva e diz que a guerra ao terror teria reinstalado as metanarrativas e que também o pós-modernismo seria uma espécie de metanarrativa (no que ele não é nada original). Mas há alguns erros em seu comentário, e convém rapidamente passar por eles para que o leitor não seja levado a mais um equívoco. É verdade que não podemos ficar sem teoria, quem prega isso é o jacobinismo fascista que liquidou qualquer sinal de vida inteligente na Alemanha da época. Mas isso não lhe permite afirmar que (a) a guerra ao terror seja uma metanarrativa nem que (b) o próprio pós-modernismo seja, ele também, uma metanarrativa. Mais ainda, seu raciocínio é equivocado porque acredita na pós-modernidade. Vejamos rapidamente por quê. Os intelectuais dos anos 30, ao pressentirem o fim da modernidade, viram, junto com ela, outros traços da nova época (era tecnológica): o novo desencanto universal (defecção do socialismo e das alternativas ao capitalismo), a nova volatilidade do real (relativa à matéria e ao conhecimento no tratamento digital) e a perigosa expansão dos meios técnicos de comunicação. Não se iludiram com posturas de euforia (futuristas) ou de uma triste ingenuidade (como, mais tarde, de McLuhan a Vattimo): perceberam que o monstro era mais perigoso do que parecia (vide a máquina de trituração fascista). Sentiram, também, o beco sem saída a que chegaria a história (que Gehlen chamara de "pós-história"). Em suma, pré-mapearam o que outros chamariam depois, equivocadamente, de pós-moderno.

Estilo de época
Isso porque pós-moderno ainda é um apelo moderno. Como para Habermas, que acredita ter havido um "desvio" na modernidade e que a coisa ainda pode ser salva. Ou seja, pós-moderno não é nenhuma metanarrativa. Essas, as metanarrativas, de fato perderam força com a crise das ideologias, com o desencanto, com o aparecimento da sociedade "desideologizada" das técnicas. Daí a guerra ao terror não poder ser jamais uma metanarrativa, primeiramente porque é pontual, ontologicamente "falsa", mera criação mercadológico-publicitária norte-americana.
Não há e nunca houve um pós-moderno, a não ser na fantasia daqueles que, ávidos de um novo "ismo", buscavam encontrar algo para substituir o vazio intelectual que nos assolou nos anos 90. Que tenha havido um "estilo" pós-moderno na arquitetura, na arte, na literatura, isso ainda não justifica uma época; no máximo, uma moda.
As épocas não se substituem deixando rabos na época seguinte. A era tecnológica (vulgarmente chamada digital, virtual, informática etc.) se impõe à modernidade, excluindo-a do jogo. Não há interpenetração nem passagem gradual, mas sobreposição. O fim do sentido (que tira definitivamente de cena um Lacan, um Peirce, por exemplo), a fractalização das identidades, a nova sensibilidade, o expurgo do unitário, nada disso garante a Eagleton o retorno às metanarrativas. Elas são herança da ontoteologia metafísica que Nietzsche, Heidegger e Derrida já trabalharam por banir.
Transformar o discurso do terror numa metanarrativa é legitimá-lo, é ressuscitar o monstro dos metarrelatos que castraram todas as formas de vida e espontaneidade que tentavam, como flores surgidas no meio da rocha, buscar respiro no árido campo das ideologias uniformizadoras da modernidade.


Ciro Marcondes Filho é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP e autor de, entre outros, "Comunicação e Jornalismo" (Hacker Editores) e "Quem Manipula Quem" (Vozes).


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