São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2002

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Ponto de fuga

A arte como beleza

Jorge Coli
Especial para a Folha

Rafael, o pintor dos pintores, o maior que jamais existiu, divino Rafael: "Quem possui tantos dons raros como Rafael de Urbino", escrevia Vasari, "não é simplesmente um homem, mas um deus mortal". Concentrando, em suas obras, o equilíbrio, a harmonia sem falha, ele determinou a concepção mais acabada do classicismo, no interior do Renascimento.
Modelo máximo para os artistas que lhe sucederam, sua presença foi se tornando tão pesada que, a partir do século 19, brotaram movimentos de contestação. Os "pré-rafaelismos", isto é, os nazarenos, os pré-rafaelitas ingleses e todos os retornos às formas arcaicas ou primitivas da arte se acentuaram mais e mais, levantando-se contra o suave mestre. Terminaram por destroná-lo. A ponto que, hoje, Rafael é mais ou menos apenas um nome, associado vagamente a Madonas e à Escola de Atenas, reproduzida em toda a parte. O gosto passou a preferir temperos mais fortes; produzir o belo deixou de ser o supremo objetivo das artes, voltadas agora para forças expressivas, para impactos, mistérios, estranhezas. A harmonia límpida de Rafael foi banalizada por olhares distraídos.
Há tempos que uma exposição não era dedicada ao pintor. O Museu do Luxemburgo, em Paris, expôs, na recente mostra "Rafael, Graça e Beleza", uma dúzia de quadros, se tanto. Mas é já um paraíso. Reprodução nenhuma transmite o que essas telas oferecem. Nada jamais será capaz de substituir o delicado acorde de ouros e azuis na "Dama do Unicórnio", em que o céu, no fundo, parece vazar à volta das pupilas.
Humanismo - O mais belo retrato masculino que alguém já tenha pintado deve ser o de Baldessar Castiglione, trazido para a exposição "Rafael, Graça e Beleza". O artista e o modelo eram amigos. Castiglione escreveu "O Livro do Cortesão", em que disserta sobre o ideal de comportamento para o homem da Renascença. Rafael, em sua arte e em si mesmo, encarnou esse arquétipo.
Castiglione empregou uma palavra, "sprezzatura", para definir a qualidade mais alta a ser cultivada: uma justa desenvoltura nos atos, em que elegância, sutileza e encanto devem ser incorporados no interior do gesto espontâneo; devem surgir, como afirma, "quase sem pensar".
"Si po dir quella esser vera arte che non pare esser arte", ele escrevia, ou seja, pode-se dizer que é verdadeira arte aquela que não parece ser arte. Nisto se encontra a "graça" do cortesão -e a graça superior contida nas telas de Rafael. Castiglione ensinava que o pior defeito é a demonstração de esforço em qualquer ação. Tudo deve parecer próprio e natural, do contrário descamba para o afetado e o postiço. Não que o esforço seja condenável. Mas ele não deve nunca transparecer nos resultados.
Evidência - Os quadros de Rafael são raros, muito preciosos, e nem todos os museus se dispuseram a empréstimos: os curadores da mostra tiveram que se contentar com o disponível. Em tentativa de enriquecê-la, acrescentaram astúcias de montagem, muito vulgares, destinadas a "fazer efeito". A iluminação buscou um clima dramático, mas descuidou das telas, por vezes projetando a sombra das molduras sobre a imagem. Não importa: Rafael resistiu a tudo.
Amor - As Madonas de Rafael são carnais e humanas. Ele amava a sensualidade feminina. O foco, na mostra parisiense, foi a reunião, pela primeira vez, da "Fornarina" e da "Donna Velata", relançando o velho debate: seriam ambas o mesmo modelo? A "Donna Velata", suntuosamente vestida, envolve-se numa quase penumbra. A "Fornarina", que teria sido amada por Rafael numa paixão cuja força o impedia de trabalhar, oferece a nudez dos seios sob luz nítida. Uma das mãos repousa entre as pernas, a outra, como numa carícia, quase toca um mamilo. A região do umbigo pulsa, erótica, sob a transparência de um véu. No braço esquerdo, há um bracelete azul e, nele, a inscrição em maiúsculas douradas: RAPHAEL URBINAS. Mais do que uma assinatura, é, antes, a marca de uma posse.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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