São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

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No sexto e último volume dos "Cadernos do Cárcere", Gramsci revê a história cultural da Itália e abre novas perspectivas para o pensamento contemporâneo

A obra em processo e os limites da tradição

Cadernos do Cárcere - Literatura, Folclore, Gramática
496 págs., R$ 45,00 de Antonio Gramsci. Trad. de Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/ xx/21/ 2585-2000).

José Luís Jobim
especial para a Folha

Carlos Nelson Coutinho, professor titular de teoria política da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tem sido um dos grandes responsáveis pela divulgação da obra de Antonio Gramsci (1891-1937) no Brasil, desde a sua primeira tradução, ainda na década de 60. Naquela época, publicar o pensador italiano era, além de um ato de resistência à ditadura militar, um ato de coragem, que deve ser devidamente creditado também ao editor Ênio Silveira, morto em 1996. Hoje a Civilização Brasileira, já sem seu emblemático editor de então, tem trazido à luz em seis volumes os "Cadernos do Cárcere". Mudaram os tempos, mas não mudou o empenho gramsciano de Coutinho. Seus companheiros no projeto atual não são os dos anos 60 nem a edição em que se baseou é apenas a de Palmiro Togliatti, publicada na Itália, entre 1948 e 1951. Coutinho leva em conta a mais recente, organizada por Valentino Gerratana, que procurou ser o mais fiel possível à forma como os textos de Gramsci foram apresentados, nos 33 cadernos escritos durante seus anos de prisioneiro político. O sexto e último volume -"Literatura, Folclore, Gramática"- talvez seja o que mais torna evidente a erudição literária e linguística de Gramsci e, simultaneamente, revela a sua insatisfação com os próprios fundamentos desta erudição.

Nativo e estrangeiro
Como ativista político, antenado nas questões de seu tempo, ele foi capaz de unir a tradição anterior à percepção marxista de que aquela tradição não dava conta de muitos aspectos da cultura contemporânea ou mesmo do passado. Uma de suas maiores contribuições teóricas foi exatamente a de demonstrar a inadequação ou insuficiência de modos de conhecimento herdados, quer para lidar com fenômenos recentes, quer para resgatar o passado. No que diz respeito à literatura e ao folclore, por exemplo, um aspecto interessante da abordagem de Gramsci é o diálogo com uma certa noção romântica do nacional-popular como identidade herdada. Ao comentar uma divisão dos cantos populares, formulada por Ermolao Rubieri, Gramsci desconsidera a definição de "cantos compostos pelo povo e para o povo", derivada daquela noção do romantismo, e aceita a de "cantos não escritos nem pelo povo nem para o povo, mas por este adotados, já que adequados à sua maneira de sentir e de pensar". Nessa mesma linha, Gramsci critica as propostas de imposição de autores italianos ao público de sua época, argumentando que, se o público prefere os autores estrangeiros, é porque "o elemento intelectual nativo é mais estrangeiro diante do povo-nação do que os próprios estrangeiros". Já em relação à crítica literária, ele adota o tipo praticado por Francesco de Sanctis (1817-1883), em que se funde a luta por uma nova cultura com crítica dos costumes, dos sentimentos e das concepções de mundo com a crítica estética. Sempre com um fervor apaixonado.

Resposta positiva
Abordando uma das questões que suscitaram mais respostas passionais entre os críticos de então ("pode-se falar de uma prioridade do conteúdo sobre a forma?"), Gramsci deu uma resposta positiva, no sentido de que a obra de arte é um processo e as modificações de conteúdo são também modificações de forma, já que o conteúdo pode ser "resumido" logicamente: "Quando se diz que o conteúdo precede a forma, quer-se simplesmente dizer que, na elaboração, as sucessivas tentativas são apresentadas com o nome de conteúdo e nada mais. O primeiro conteúdo que não satisfazia era também forma e, na realidade, quando se atinge a "forma" satisfatória, também o conteúdo se modifica".
Para guiar o leitor, que pode sentir-se perdido em meio a um emaranhado de referências a obras e autores do mundo intelectual italiano ou internacional, esta nova edição apresenta, além de notas explicativas ao texto, um índice onomástico e outro com os principais conceitos. Trata-se, em suma, de uma edição que buscou ser cuidadosa e acessível, virtudes nem sempre encontradas nos empreendimentos do gênero.


José Luís Jobim é professor titular de teoria da literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Federal Fluminense. É autor de "Formas da Teoria" (ed. Caetés) e "A Biblioteca de Machado de Assis" (ed. Topbooks/ABL).


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