São Paulo, domingo, 4 de janeiro de 1998.



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ARTES PLÁSTICAS
A cidade-caleidoscópio


Curador do Arte/Cidade avalia os resultados da intervenção urbana feita pelo projeto em São Paulo, de outubro a dezembro


NELSON BRISSAC
especial para a Folha

Em entrevista à Folha (Ilustrada, 28/10/97), a curadora da Documenta de Kassel, Catherine David, fez comentários sobre o projeto Arte/Cidade que podem servir de ponto de partida para nossas reflexões. Em seu depoimento, ela fez uma contraposição entre a noção de "site specific" -atribuída às intervenções do projeto e imprópria para apreender a constituição do espaço contemporâneo- e leituras de territórios.
A complexidade das questões espaciais postuladas por Arte/Cidade -devido à escala metropolitana da intervenção- desmente por si só essa tentativa de circunscrição a uma idéia limitada de arte para lugar específico. Considerações desde logo paradoxais, visto que esses conceitos foram tratados na própria Documenta de modo teórico e abstrato. A efetiva implantação da exposição na cidade de Kassel -num eixo que parte de uma estação de trens e passa por alguns prédios de museus- foi absolutamente tímida.
Não houve em Kassel qualquer tentativa mais contundente de ler nem redimensionar este espaço urbano. Nenhuma obra que tenha tido relação mais significativa com a arquitetura dos locais, o trajeto proposto ou a escala urbana. Nenhum impacto sobre a organização ou a percepção da área -por sinal, uma pequena cidade de interior. Do ponto de vista das questões mais importantes da arte e da cidade contemporâneas, a Documenta foi uma exposição rigorosamente convencional: apresentou registros do que foi criado em outros lugares.
Plantas fabris
A situação proposta por Arte/Cidade colocou desde logo a questão da escala de uma intervenção urbana. Tratava-se de um trecho de ramal ferroviário de cerca de 5 km, ao longo do qual se distribuíam os locais ocupados. A linha férrea integraria, a princípio, os diferentes pontos que já não são percebidos mais como tendo uma conexão entre si ou fazendo parte de uma área articulada pelo trem, apesar de, historicamente, terem sido criados ao longo da estrada de ferro. Largados à margem de um ramal que não lhes serve mais, eles são vazios surgidos no meio da superfície fraturada da metrópole. A transferência das atividades econômicas deixou essas grandes plantas fabris abandonadas. O caótico traçado das ruas contraposto à via ferroviária também contribuía para dificultar a apreensão da área. A fragmentação do tecido urbano parecia criar descontinuidades intransponíveis, uma distância absoluta entre esses lugares.
Foi postulada uma situação que, devido a sua escala, não se dá de imediato à nossa percepção. A linearidade aqui não favorece a apreensão visual. Não há um ponto afastado ou elevado (morros, altos edifícios) de observação. Uma extensão que não se consegue apreender pelo olhar.
Entre as estações e as antigas Indústrias Matarazzo constitui-se um campo desmesuradamente ampliado. O ramal é só uma via de passagem em velocidade, não há nem como, dos trens, ver a paisagem. O diálogo não se faz mais com o contíguo, mas com o distante. A metrópole, armada por uma nova trama de circuitos de transporte e comunicação, rasga-se em todas as direções. Um estilhaçamento que a converte numa amálgama de áreas desconectadas. Ao avançar, a cidade deixa um vácuo atrás de si. Como intervir nessa escala imensa, que impede toda localização, a fixação de pontos de referência?
Arte/Cidade 3 pode ser entendido como uma intervenção na escala da paisagem urbana. Neste sentido, enquanto reflexão sobre a experiência e a percepção das dimensões metropolitanas, retomou outras abordagens artísticas que tiveram como ponto central a questão da grande escala, como a "land art".
Linhas da "land art"
A linha é um princípio recorrente na arte de grande escala. Carl Andre propõe que a escultura assuma a posição horizontal, em contraposição à verticalidade antropomórfica à qual a estátua é tradicionalmente associada. Ele trabalhou a partir da experiência em estradas de ferro, dos longos trens que acompanham o terreno. Suas esculturas incorporariam essa questão de mover elementos idênticos de um ponto a outro, de "seguir a topografia". Linhas retas de tijolos que ligam dois espaços diferentes ou que acompanham os contornos de uma colina. Um trabalho "on the line".
Não se tem um ponto de vista único de uma estrada, só a apreende aquele que se move ao longo dela. O observador passa a compartilhar o campo da obra, a percepção resultando da experiência de percorrer um espaço extenso que não se desvenda mais de uma só perspectiva.
Para Robert Morris, as linhas de Nazca, no Peru, servem para evidenciar essa questão das condições da percepção em grandes escalas. Essa trama de linhas traçadas numa planície desértica, pelo simples método de retirar pedras, feita há cerca de 10 mil anos, provoca impacto quando vista do alto, mas é quase invisível do chão. São as condições da percepção nesta escala que interessam aqui. De perto, as linhas simplesmente não se revelam. Só ao nos colocarmos numa linha, de modo que ela se estenda até o horizonte, é que elas ganham clareza.
As linhas escavadas no deserto de Michel Heizer retomam o mesmo partido. "Double Negative" (1970) -dois cortes profundos no solo, cada um de um lado de uma escarpa- deslocou 240 mil toneladas de terra: a obra remete à escala das grandes paisagens do oeste americano. Apesar de massiva, é quase imperceptível na imensa planície. Os dois cortes proporcionam uma experiência da vastidão, ao instaurar um vazio, que é distinta do monumento tradicional, que ocupa o espaço. O trabalho é um confronto com essas dimensões improváveis.
A mesma tentativa de traçar um padrão de orientação numa paisagem imensamente grande, onde de fato não há localização -marcos, referências- possível, aparece em Walter De Maria. "Las Vegas Piece" (1969) consiste em quatro tênues linhas traçadas no deserto, direcionadas para cada um dos pontos cardeais, delineando uma orientação a seguir numa paisagem em que se poderia vagar sem direção. Sua configuração, porém, nunca é inteiramente visível. É ao andar pela obra que se pode perceber o sentido do traçado. Uma experiência da relativamente insignificante escala física das criações humanas, em contraste com a geografia da região.
Essas obras enfatizam o confronto com as grandes distâncias, as relações com escalas astronômicas de tempo e espaço. A noção de "scanning" foi introduzida por Andre e Morris como um modo de percepção próprio para essas situações. Destaca a horizontalidade e a distância. É um tipo de observação que, em vez de fixar-se num objeto, faz-se percorrendo horizontalmente uma área. Faz-se por varredura -um modo de observação próprio do radar e dos satélites. Um esquema que não corresponde mais ao dispositivo ocular, à organização do espaço feita pelo olho: a visão periférica, lateral, horizontal, em vez do foco centrado num objeto, é que serve para enfrentar a grande escala. Percepção do ilimitado, do oceânico -a visão do que se estende, indiferenciado, até o horizonte.
A metrópole também coloca essa situação. Como a Torre de Babel, seus habitantes são pequenos demais para tomá-la como uma só forma, imagem que atenta para o foco do olhar, desestabilizando a posição da qual se descortinaria o todo. Dimensões que desencorajam visões que pretendam abarcar tudo. Um outro tipo de urbanismo: essa massa não pode mais ser controlada por um único gesto. As grandes escalas metropolitanas provocam uma metamorfose no campo da percepção. Não há mais visão direta. Dá-se uma perda da apreensão espacial, das referências sensíveis, da experiência.
Uma intervenção urbana vai, então, se fazer contra dois aspectos básicos da ocupação espacial: o eixo e o percurso. Aqui o eixo deixa de pretender controlar o território e passa a ligar em sequência não necessariamente significante objetos e vistas. O percurso deixa de pressupor uma narrativa, de dar caráter simbólico aos lugares.
Hiatos na narrativa
Na situação proposta por Arte/Cidade, os locais percorridos permanecem espaços periféricos, pois o eixo ferroviário não assegura mais qualquer articulação e centralidade. Os trilhos são índice de uma insuperável ruptura. A metrópole é uma rede esticada e vazada, sempre a ponto de romper, com suas diferentes partes ameaçadas de dispersão. Não se pretendeu reconstituir o trajeto que fazia o trem, fio condutor da história e do funcionamento da cidade. Esses lugares são apenas pontos de parada: intervalos. Hiatos na narrativa urbana, interrupções no seu contínuo histórico, estes espaços intermediários iriam redesenhar o mapa da cidade pela conexão de elementos afastados.
No Arte/Cidade tínhamos uma composição ferroviária especial, parando em locais onde não existem mais estações. Surgia assim a possibilidade de repensar toda a área. Um trem que vem e vai, num trecho mais curto, reconfigura a região. Além disso, o trem foi rearticulado com os eixos rodoviários, criando acessos à ilha do Moinho e às ruínas da Matarazzo, áreas que tinham ficado isoladas. Nos locais, foram reativadas as passarelas sobre os trilhos e as escadas dos prédios, dinamizando os fluxos horizontais e verticais. Todo um novo circuito, regido por uma investigação sobre a organização e a percepção do espaço urbano -independente das necessidades funcionais da cidade- foi criado ali.
Instaurou-se um ritmo sem medida, uma linha de variação contínua: modo como o fluido ocupa o espaço. A área alterou-se por completo. Aquela região comprimida junto ao rio, circunscrita pela estrada de ferro, fragmentada pela desconexão entre a linha de trem e a trama rodoviária transformou-se num espaço liso, uma ampla extensão tecida por vias de transporte que percorrem em todas as direções. Um espaço superficial e fluido típico da megalópole.
Trama multidirecional
No espaço convencional, os trajetos foram subordinados aos pontos. Vamos de um ponto a outro. No Arte/Cidade ocorreu o inverso: os pontos (paradas) é que foram subordinados ao trajeto, um corte traçado através de uma paisagem hoje desconectada e oculta. O percurso é que estabelecia paradas. A linha era um vetor, uma duração. Não uma determinação métrica. Foi o que fez a readequação dos ramais e do trajeto do trem.
Os novos percursos engendraram fluxos turbilhonários que se contrapunham à mecânica. Um processo que se opunha ao mundo determinista criado ali no período da industrialização -o traçado rígido da via férrea, os horários das composições, as paradas obrigatórias. Um sistema mecânico que agora está em ruínas. A intervenção veio se contrapor às determinações mecânicas do dispositivo ferroviário, apontando para outras formas de organizar o espaço urbano.
Há outro aspecto da intervenção neste ramal de trens: a nova composição iria percorrer o trecho em menor velocidade. Uma desaceleração, uma freagem, criando diferentes intervalos entre as composições. Outras velocidades, verdadeiros diferenciais. O resultado não foi só um novo agenciamento espacial, mas também uma nova temporalidade, criada por esses outros ritmos. O trem, responsável pela padronização dos horários e da velocidade, ganhou aqui direções e velocidades diferenciadas.
A partir dos trens regulares, que atravessam a área em alta velocidade, fazendo uma só parada, mal se consegue vislumbrar os locais. As diferenças de velocidade entre essa composição e as outras, trafegando no mesmo ramal, introduziriam um retardamento, uma desaceleração, permitindo outra percepção da área. Ver o que nas passagens em velocidade passava despercebido. De repente, ao trecho se agregaram outros fluxos, em direções diferenciadas e velocidades distintas. Até o usuário cotidiano da linha férrea pôde ver outras coisas.
O dispositivo ferroviário foi transformado, experimentalmente, no seu inverso: um vetor de fluidos, sem direção nem velocidade fixas. Introduziram-se alterações no tempo (horários) e no espaço (trajeto), criando um fluxo contínuo sem linearidade nem constância. O trajeto do trem passou a se assemelhar à trama multidirecional das redes de comunicação (Internet). O modo mecânico encontrou o eletrônico. Não importa se essa interferência foi devida à limitações técnicas, tirou-se partido delas para obter uma experiência diferente de tempo e espaço no sistema ferroviário.
A própria composição ferroviária preparada para Arte/Cidade, pintada com motivos cinéticos inspirados na vanguarda russa, era uma presença que contribuía para organizar a percepção daquela extensa área. O trem conquista a escala da paisagem.
As intervenções artísticas e arquitetônicas de Arte/Cidade também propuseram essa questão da grande escala. Não era o tamanho da área que importava, o fato de ser simplesmente muito extensa. Esse território postulava uma grandeza em si, sem medida específica. Situação que nos colocava diante de não poder compreender a totalidade, medir, dar continuidade. A partir de um certo ponto, a escala superava o que podia estar contido nos padrões clássicos de organização.
É fundamental esse enfrentamento com dimensões que implicam em incomensurabilidade, que escapam à nossa percepção. O impacto da escala dissolve toda veleidade de continuidade espacial. Nenhum aparato visual pode articular esses pontos. Não há qualquer sequência possível, nenhuma unidade do tecido urbano. Um espaço que nenhum gesto pode cerzir, que nenhum dispositivo técnico pode integrar. Como confrontar essas extensões sem contornos nem limites?
Parte significativa das intervenções de Arte/Cidade trataram dessa escala, decididamente urbana, pós-arquitetônica. O movimento de terra de Fernando Franco e Milton Braga, uma releitura da topografia do local; o observatório de paredes de taipa de José Spaniol, estabelecendo uma relação com as grandes dimensões da paisagem; a cartografia que faz Carlos Vergara por meio das ervas medicinais que proliferam na área; os cortes de laje de Nelson Félix e o vórtice de areia de Laura Vinci, introduzindo tensão e transparência na rígida estrutura do Moinho; a tentativa de Ruy Ohtake de ligar uma das chaminés a um dispositivo de espelhamento junto à avenida; o elevador de Paulo Mendes da Rocha, remetendo à horizontalidade dos ramais; as mutações da matéria operadas por Ricardo Ribenboim ao longo dos trilhos; o farol de Regina Meyer, demarcando a fronteira da cidade industrial como uma referência visível em toda a região; e, por fim, as intervenções nas passarelas, torres e viadutos realizadas pelo grupo de Renata Motta.
Trabalhos que incidiram sobre a estrutura das construções ou sobre o traçado daquela área urbana. Muitas vezes inapreensíveis no local -pois apontavam para um desenho que não se pode perceber, que nenhum ponto de vista dá conta, uma dimensão decididamente urbana-, requerendo um contraponto de informações (folhetos, site, vídeo, TV) para serem entendidos.
Uma trama intrincada de dimensões espaciais que ia desde o local até o regional, uma justaposição de temporalidades que incluía, no presente, o passado e o porvir. Complexidade já postulada nas mais contundentes obras em grande escala, como as de Robert Smithson, onde se coloca a questão da apreensão de intervenções em locais remotos. Uma combinatória de obra, mapas, fotografias, filmes, objetos e textos -sem obedecer a qualquer relação de natureza e escala-, que constitui a configuração mais contemporânea da paisagem.
O conjunto de intervenções de Arte/Cidade redimensionou por completo a percepção e a experiência deste território urbano, desta área constituída por elementos sem proporção, sem medida comum. Formas de espacialidade que se estendem infinitamente, sem pontos de referência, como o mar e o deserto. No Arte/Cidade tudo se distribuía num regime de relações de velocidade e lentidão, segundo composições em permanente variação. Os ramais de trem e as autopistas, cortando a área em todos os sentidos, alterando sem parar a direção do movimento, contribuíam para formar um terreno movente, liquefeito, volátil.
Uma nova cartografia surgiu dessas recomposições espaciais e temporais. Um novo espaço formado por essas inesperadas reconfigurações. A metrópole contemporânea é um espaço intrincado e fluido, rearticulando-se continuamente, a cada movimento, como um caleidoscópio.


Nelson Brissac Peixoto é ensaísta e foi curador do Projeto Arte/Cidade.



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