São Paulo, domingo, 4 de janeiro de 1998.



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HISTÓRIA
Um herói para todas as estações


Luiz Carlos Prestes, nascido há cem anos, nunca abandonou o ar glacial e cortês de um general de Exército da Primeira República


PAULO SÉRGIO PINHEIRO
especial para a Folha

Heróis se medem por feitos, coragem, invenção e, se possível, martírio (ou suicídio). Não precisam acertar ou ter sucesso. Alguns brasileiros talvez se qualificam para essa galeria: Zumbi, Frei Caneca, Tiradentes, José Bonifácio, Rui Barbosa, Santos Dumont, Getúlio Vargas. E Luiz Carlos Prestes (1898-1990). Nenhum feito na República se equipara à Coluna Prestes. Poucos homens políticos acertaram tão pouco e marcaram tanto a história republicana depois da Primeira Guerra Mundial, chegando ao fim com dignidade, pobreza e decência, lembra-me com razão Fernando Millan.
Prestes e seus companheiros, numa guerra de movimento, entre abril de 1925 e fevereiro de 1927, percorrem 25 mil quilômetros por dez Estados brasileiros, do sul ao norte, em uma média de 33 quilômetros de caminhada diária, obrigando o presidente Arthur Bernardes e o Exército a lançarem mão de cangaceiros e bandos armados, até se internarem invictos na Bolívia.
Os feitos da Coluna exerceram um tremendo fascínio na Internacional Comunista, o Comintern, a central da revolução mundial a partir de Moscou, depois de 1919. A marcha da Coluna Prestes será saudada como uma "epopéia revolucionária histórica sem igual na história do povo brasileiro".
Num prazo mais curto, quase dez anos depois, entre 15 de outubro de 1934 e 20 de outubro de 1935, o Exército Vermelho na China percorrerá 10 mil quilômetros (ainda que num território mais acidentado). Depois dessa Grande Marcha, o Comintern olhará o Brasil e verá a China, fitará Prestes e enxergará Mao Tse-tung.
Se Prestes era capaz de fazer aqueles feitos sem o programa e as idéias do marxismo soviético, imaginem, pensavam o Comintern, o que não faria o "Cavaleiro da Esperança" com a força daquelas idéias. O pequeno problema é que os estrategistas comunistas (e Prestes) não se haviam dado conta, ou subestimavam, as mudanças ocorridas na estrutura do poder depois de 1930: o frágil poder estatal "nacional" da Primeira República havia-se consolidado, as Forças Armadas estavam melhor enquadradas sob o comando central e a "política dos governadores", com seu equilíbrio político ultrainstável entre os Estados brasileiros substituída por uma rígida política de centralização, com interventores em cada Estado nomeados pelo poder central.
O que aproxima Prestes e os comunistas, a partir de 1927, ano do seu exílio na Argentina (muito mais cedo que em 1934, ano geralmente indicado para sua "conversão" ao comunismo), é a concepção do Estado como fortaleza que pode ser conquistada por meio de técnica da insurreição armada. Como a revolução soviética dispensou a mobilização popular, os "tenentes" brasileiros interessavam aos comunistas como técnicos da revolução, e os comunistas interessavam a Prestes como alternativa às dissidências das oligarquias que -apesar de ainda contarem para a revolução brasileira com líder da Coluna- começavam a se afastar dele.
Prestes, ainda com a aura de chefe militar da futura revolução brasileira, vai duas vezes ao encontro de Getúlio Vargas, em setembro de 1929 e janeiro de 1930. Foi o encontro mais fascinante de toda a história da República. A evolução da cena política brasileira nos 30 anos seguintes será determinada pelas decisões tomadas por ambos. Prestes aceita ir a Vargas para marcar seu distanciamento das dissidências das oligarquias, Vargas recebe Prestes para ganhar tempo junto aos que preparavam a revolução, encontram-se para se desencontrarem. Dois percursos de vida tão diferenciados, que voltarão a se cruzar em 1935, Prestes dirigindo a insurreição, Vargas servindo-se dela para implantar a ditadura em 1937. E em 1945, no final do Estado Novo, Vargas adiando sua deposição iminente pelo Exército, Prestes e os comunistas apoiando o ditador.
Erram aqueles que insistem em ler os movimentos "tenentistas" dos anos 20 e a Coluna Prestes como revoltas diferenciadas de rebelião comunista de 1935 no Rio de Janeiro: ao contrário, são manifestações distintas da mesma concepção "putschista" da conquista do poder, o Estado considerado como uma cidadela a abater. A insurreição militar-comunista no Rio de Janeiro é o reencontro de Prestes com sua essência: destituído dos discursos da retórica messiânica da Internacional Comunista, o putsch carioca usa os mesmos instrumentos das revoltas do Forte de Copacabana em 1922 ou da Revolução de 1924 em São Paulo, pretendendo fazer como na Rússia, em 1917.
A insurreição de 1935 é marcada pelo predomínio das concepções "tenentistas", pela aura do Cavaleiro da Esperança e de sua epopéia. A insurreição pode até ter destoado da estratégia geral comunista de frentes populares na época, mas na periferia semicolonial a Internacional Comunista apóia (e coordena) a aventura do herói. Ao lado de Mao Tse-tung e Chou En-lai, do búlgaro Dimitrov e do francês Maurice Thorez e de outras lideranças comunistas, Prestes (mesmo ausente de Moscou) entra para o grupo de 31 membros do Comitê Executivo da Internacional Comunista, em agosto de 1935, antes, portanto, da insurreição.
Até então o herói Prestes determina os acontecimentos; o apoio ao ditador Vargas para a transição política em 1945 é uma virada de submissão às teses conciliadoras da Internacional Comunista no seu estertor. O herói -martirizado pela tortura do Estado Novo, sua mulher, Olga Benário, entregue por Vargas ao extermínio nazista- veste o terno, o general dá lugar ao senador eleito na redemocratização até 1948, quando o PCB é proscrito. Em 1964, às vésperas do golpe militar, o antigo herói crê na mobilização dos comunistas para assumir o poder, contra todos os elementos da realidade, e toma o exílio, do qual somente voltará em 1979, com a anistia.
Como tratar Prestes então? A convenção requeria, e a ela nos inclinávamos, chamá-lo de senador da República, último cargo que exercera (como dizia Severo Gomes: ao contrário de ex-ministro e ex-marido, o título de senador cola-se à pessoa). Mas mesmo assim, tratado pelo cargo civil, em nenhum momento Prestes quebrava o distanciamento glacial, educado, cortês, de um general de Exército da Primeira República, por mais que tivesse renegado sua corporação e sido execrado por ela. Impossível deixar de perceber ali na nossa frente o general da Coluna, a aura de herói intocada.


Paulo Sérgio Pinheiro é professor titular de ciência política e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência. É autor, entre outros, de "Estratégias da Ilusão - A Revolução Mundial e o Brasil 1922-1935" (Companhia das Letras).



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