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Obra principal de Schopenhauer, agora em tradução completa, faz
o elogio do alívio momentâneo do sofrimento de que a arte é capaz
A consolação provisória
ROBERTO MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Pouco a pouco são traduzidos
no Brasil os grandes monumentos da filosofia. Agora é a
vez de "O Mundo Como Vontade e Como Representação", livro
em que Arthur Schopenhauer [1788-1860] apresenta seu pensamento como um cristal cujos raios convergem para o centro. Esse pensamento, mais orgânico do que sistemático, organizado como as grandes
doutrinas filosóficas em ontologia,
teoria do conhecimento, estética e
ética, foi aprimorado com o tempo,
sem modificação fundamental.
A primeira edição do livro, de 1819,
recebeu "suplementos", que o enriqueceram, mas não o ultrapassaram, quando foi republicado em
1844. O escrito de 1819 já havia sido
publicado entre nós, em 2001, pela
editora Contraponto, ao retomar
uma tradução feita em Portugal. O
interesse desta nova edição é apresentar, além do texto principal, três
prefácios, os suplementos e a "Crítica da Filosofia Kantiana" -que o
autor já havia situado como apêndice a sua obra-, acrescentando-lhes
um índice onomástico e um índice
de assuntos.
Schopenhauer elabora os dois
conceitos mais importantes de sua
filosofia: a representação e a vontade, inspirado nos conceitos kantianos de fenômeno e coisa-em-si. O
mundo é representação enquanto
existe como um objeto que pressupõe um sujeito mas também como
submetido ao princípio de razão
-tempo, espaço e causalidade-,
expressão das condições formais do
objeto. O mundo é vontade enquanto essência das coisas particulares e
do conjunto dos seres. A vontade como essência do mundo é única, indivisível, sem fundamento; um impulso cego, irracional, inconsciente.
Schopenhauer foi o primeiro a denunciar a metafísica pela prioridade
que ela atribui à razão.
Mas "O Mundo Como Vontade e
Como Representação" tem um terceiro conceito importante: a idéia.
Inspirado em Platão, Schopenhauer
pensa as idéias como propriedades
originais, universais e imutáveis dos
objetos particulares, como essências. Elas não se confundem, porém,
com a vontade. Por ser manifestação
-mesmo que a mais imediata- da
vontade, a idéia é representação:
uma representação não sujeita à pluralidade e à mudança, mas ainda
submetida à distinção sujeito-objeto, a forma mais geral da representação. A importância das idéias para o
conhecimento é imensa. Pois enquanto o conhecimento está submetido ao princípio de razão, existe a
serviço da vontade. Já quando intui
as idéias, o conhecimento torna o indivíduo puro sujeito de conhecimento, isento de vontade.
Superioridade da arte
Se, para Schopenhauer, a arte é superior à ciência, é porque o conhecimento das idéias proporcionado pelo gênio artístico é a apreensão intuitiva da essência dos objetos. Enquanto a ciência e o senso comum
produzem um conhecimento utilitário, a arte reproduz idéias eternas
por meio da contemplação pura:
percepção completamente desinteressada, não submetida ao querer.
Ao pensar o conhecimento artístico como libertação momentânea
dos desejos, Schopenhauer faz seu
grande elogio da arte. Pois enquanto
se vive submetido ao querer, guiado
pela vontade, não há felicidade duradoura. Se o desejo procede de uma
privação, de uma falta, só traz sofrimento enquanto não for satisfeito.
Ora, a quase totalidade dos desejos
não é satisfeita. Pior ainda, nenhum
desejo tem uma satisfação durável.
Ao ser satisfeito, o desejo dá lugar a
novo desejo, e assim por diante. Daí
a célebre afirmação, tão importante
para Proust: a vida oscila, como um
pêndulo, do sofrimento para o tédio.
O interessante é que, depois de ter
partido de uma concepção pessimista da vontade, Schopenhauer sente
que o homem pode se libertar da situação por ele diagnosticada. Basta
ver as coisas de uma maneira desinteressada, adquirindo o repouso,
que em vão procurava enquanto estava submetido à vontade. Assim,
por exemplo, ao apresentar o combate das manifestações individuais
da vontade, e os sofrimentos que ele
acarreta, a poesia trágica mostra que
a vida é um pesadelo do qual é preciso acordar, afastando-se do querer.
É esse conhecimento do que é a
vontade e da necessidade de se desinteressar dela, libertando-se do
princípio de individuação, e de sua
conseqüência, o egoísmo, que explica a alegria dada pela arte.
Mas a arte não liberta o homem
definitivamente do sofrimento da
vida; apenas o alivia momentaneamente. É uma consolação provisória, até que, sentindo sua força aumentada, ele se volte para sua conduta moral. No comportamento ético, tal como se encontra no ascetismo cristão, hindu e budista, o conhecimento pode realizar mais radicalmente a negação da vontade, isto
é, a resignação, que é a essência de
toda virtude. A libertação definitiva,
com a alegria que lhe é correlata, só
se dá no plano ético, com um ato de
resignação absoluta.
Esse "pensamento único", exposto
de forma cristalina, marcou filósofos
como Nietzsche, músicos como
Wagner, cientistas como Freud, romancistas como Proust ou Machado
de Assis. Agora que o sonho moderno se torna pesadelo, a tradução
completa da obra principal de Schopenhauer certamente levará a que
muitos ainda sejam tocados por seu
poder de revelação.
Roberto Machado é professor do Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de
"Foucault, a Filosofia e a Literatura" e de
"Zaratustra, Tragédia Nietzschiana" (ambos
pela Jorge Zahar).
O Mundo Como Vontade
e Como Representação
695 págs, R$ 89
de Arthur Schopenhauer. Tradução de Jair
Barboza. Ed. Unesp (praça da Sé, 108, São
Paulo, SP, CEP 01001-900, tel. 0/ xx/11/
3242-7171).
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