São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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Obra principal de Schopenhauer, agora em tradução completa, faz o elogio do alívio momentâneo do sofrimento de que a arte é capaz

A consolação provisória

ROBERTO MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pouco a pouco são traduzidos no Brasil os grandes monumentos da filosofia. Agora é a vez de "O Mundo Como Vontade e Como Representação", livro em que Arthur Schopenhauer [1788-1860] apresenta seu pensamento como um cristal cujos raios convergem para o centro. Esse pensamento, mais orgânico do que sistemático, organizado como as grandes doutrinas filosóficas em ontologia, teoria do conhecimento, estética e ética, foi aprimorado com o tempo, sem modificação fundamental.
A primeira edição do livro, de 1819, recebeu "suplementos", que o enriqueceram, mas não o ultrapassaram, quando foi republicado em 1844. O escrito de 1819 já havia sido publicado entre nós, em 2001, pela editora Contraponto, ao retomar uma tradução feita em Portugal. O interesse desta nova edição é apresentar, além do texto principal, três prefácios, os suplementos e a "Crítica da Filosofia Kantiana" -que o autor já havia situado como apêndice a sua obra-, acrescentando-lhes um índice onomástico e um índice de assuntos.
Schopenhauer elabora os dois conceitos mais importantes de sua filosofia: a representação e a vontade, inspirado nos conceitos kantianos de fenômeno e coisa-em-si. O mundo é representação enquanto existe como um objeto que pressupõe um sujeito mas também como submetido ao princípio de razão -tempo, espaço e causalidade-, expressão das condições formais do objeto. O mundo é vontade enquanto essência das coisas particulares e do conjunto dos seres. A vontade como essência do mundo é única, indivisível, sem fundamento; um impulso cego, irracional, inconsciente. Schopenhauer foi o primeiro a denunciar a metafísica pela prioridade que ela atribui à razão.
Mas "O Mundo Como Vontade e Como Representação" tem um terceiro conceito importante: a idéia. Inspirado em Platão, Schopenhauer pensa as idéias como propriedades originais, universais e imutáveis dos objetos particulares, como essências. Elas não se confundem, porém, com a vontade. Por ser manifestação -mesmo que a mais imediata- da vontade, a idéia é representação: uma representação não sujeita à pluralidade e à mudança, mas ainda submetida à distinção sujeito-objeto, a forma mais geral da representação. A importância das idéias para o conhecimento é imensa. Pois enquanto o conhecimento está submetido ao princípio de razão, existe a serviço da vontade. Já quando intui as idéias, o conhecimento torna o indivíduo puro sujeito de conhecimento, isento de vontade.

Superioridade da arte
Se, para Schopenhauer, a arte é superior à ciência, é porque o conhecimento das idéias proporcionado pelo gênio artístico é a apreensão intuitiva da essência dos objetos. Enquanto a ciência e o senso comum produzem um conhecimento utilitário, a arte reproduz idéias eternas por meio da contemplação pura: percepção completamente desinteressada, não submetida ao querer.
Ao pensar o conhecimento artístico como libertação momentânea dos desejos, Schopenhauer faz seu grande elogio da arte. Pois enquanto se vive submetido ao querer, guiado pela vontade, não há felicidade duradoura. Se o desejo procede de uma privação, de uma falta, só traz sofrimento enquanto não for satisfeito. Ora, a quase totalidade dos desejos não é satisfeita. Pior ainda, nenhum desejo tem uma satisfação durável. Ao ser satisfeito, o desejo dá lugar a novo desejo, e assim por diante. Daí a célebre afirmação, tão importante para Proust: a vida oscila, como um pêndulo, do sofrimento para o tédio.
O interessante é que, depois de ter partido de uma concepção pessimista da vontade, Schopenhauer sente que o homem pode se libertar da situação por ele diagnosticada. Basta ver as coisas de uma maneira desinteressada, adquirindo o repouso, que em vão procurava enquanto estava submetido à vontade. Assim, por exemplo, ao apresentar o combate das manifestações individuais da vontade, e os sofrimentos que ele acarreta, a poesia trágica mostra que a vida é um pesadelo do qual é preciso acordar, afastando-se do querer.
É esse conhecimento do que é a vontade e da necessidade de se desinteressar dela, libertando-se do princípio de individuação, e de sua conseqüência, o egoísmo, que explica a alegria dada pela arte.
Mas a arte não liberta o homem definitivamente do sofrimento da vida; apenas o alivia momentaneamente. É uma consolação provisória, até que, sentindo sua força aumentada, ele se volte para sua conduta moral. No comportamento ético, tal como se encontra no ascetismo cristão, hindu e budista, o conhecimento pode realizar mais radicalmente a negação da vontade, isto é, a resignação, que é a essência de toda virtude. A libertação definitiva, com a alegria que lhe é correlata, só se dá no plano ético, com um ato de resignação absoluta.
Esse "pensamento único", exposto de forma cristalina, marcou filósofos como Nietzsche, músicos como Wagner, cientistas como Freud, romancistas como Proust ou Machado de Assis. Agora que o sonho moderno se torna pesadelo, a tradução completa da obra principal de Schopenhauer certamente levará a que muitos ainda sejam tocados por seu poder de revelação.


Roberto Machado é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Foucault, a Filosofia e a Literatura" e de "Zaratustra, Tragédia Nietzschiana" (ambos pela Jorge Zahar).

O Mundo Como Vontade e Como Representação
695 págs, R$ 89 de Arthur Schopenhauer. Tradução de Jair Barboza. Ed. Unesp (praça da Sé, 108, São Paulo, SP, CEP 01001-900, tel. 0/ xx/11/ 3242-7171).



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