São Paulo, domingo, 04 de outubro de 2009

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País de uma ética só

Pesquisa revela convergência de visões sobre a corrupção em toda a sociedade

WANDERLEY GUILHERMEDOS SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nós, brasileiros, não somos normais. Adeus, autonomia da consciência individual do bom e velho liberalismo. Nós, brasileiros, estamos sendo normalizados. Assim eram designados os dissidentes políticos na União Soviética, depois de recuperados à normalidade pelas prisões e pelos tratamentos psiquiátricos dos campos de concentração.
De acordo com a teoria oficial de então, só sujeitos coletivos, não indivíduos, alcançam a verdade. O sujeito coletivo era, no caso, o Partido Comunista da União Soviética, e suspeitar de suas opiniões equivalia a negar a verdade objetiva -só mesmo estando de má-fé ou mentalmente comprometido.
Daí os tratamentos e as normalizações. Pois não é que, com respeito ao fenômeno da corrupção, nós, brasileiros, pensamos praticamente a mesma coisa, descontados raros e excepcionais desvios?
Sim, homens ou mulheres, entre 16 e mais de 60 anos, quase analfabetos ou de educação dita superior, vivendo da mão para a boca ou com renda mensal de mais de 10 salários mínimos, estando localizados entre uma das classes de A a E, torcedores de PT, PMDB, PSDB ou de nenhum partido, habitando qualquer das cinco regiões do país, na capital ou no interior dos Estados, incluídos ou não na população economicamente ativa e devotos de alguma fé, ou mesmo ateus, nós temos opiniões semelhantes às do nosso vizinho ou, na melhor das hipóteses, às do vizinho do nosso vizinho. É isso aí.
Desde as duas polegadas a mais de Martha Rocha, em 1954, nós, brasileiros, aprendemos o valor das pequenas diferenças. Candidatos a postos eletivos e colunistas disputam sobre as mínimas margens de erros dos resultados das enquetes de opinião ou das informações do IBGE sobre o crescimento das inversões em bens de capital. E com certa razão.
Mas o fenômeno sociológico que atrai nos resultados agregados é a extraordinária convergência das opiniões, considerando a enorme quantidade de possíveis combinações entre sexo, idade, educação, renda, ocupação, local de residência, partido e religião, com os desdobramentos que cada uma dessas variáveis permite.
Não obstante, para a maioria da população entrevistada, o ordenamento estatístico canônico das opiniões sobre a corrupção resulta ser o seguinte:
trata-se de algo que ocorre no setor público, no governo (43%), é identificado com falta de ética (21%), com o roubo de bens, de dinheiro (19%), com a comissão de atos ilegais, transgressões da lei (4%), com crimes fiscais, relacionados a impostos (3%) e com extorsão e suborno para a aquisição de favores pessoais (2%). O resto dos entrevistados não sabe, não lembra ou preferiu não responder.


Em uma democracia, quais são as possíveis consequências políticas de uma sociedade sociologicamente normalizada?


Convergências
A construção dessas grandes rubricas inclui diversos itens, que a agregação torna homogêneos pelo denominador comum da rubrica. Assim, respostas tais como "apropriação indevida de dinheiro público/ desvio de verbas" ou "políticos que usam verba pública em benefício próprio", entre outras respostas semelhantes (e cujas distribuições encontram-se disponíveis), são tornadas equivalentes pela rubrica "algo que ocorre no setor público/no governo". Somente duas grandes entradas -"roubar bens/ dinheiro" e "atos ilícitos/transgressões da lei"- não são compostas por itens diferenciados.
Existe, por certo, a possibilidade de que se cometam excessos de agregação, comprometendo a fidedignidade dos resultados e, portanto, a validade das interpretações. Mas o crescente refinamento técnico das investigações tende a reduzir bastante a probabilidade de ocorrerem excessos dessa natureza.
O principal objeto de interpretação consiste na variação de frequência nas respostas dentro de cada rubrica e entre as variáveis (sexo, renda, escolaridade etc.). Por aí é que se medem diferenças de opinião entre um cidadão com alta escolaridade e renda e, outro, semianalfabeto e com renda de até dois salários mínimos. Mas precisamente aí é que sobressai a convergência normalizadora, antes da divergência derivada da autonomia individual.
As diferenças existem, seguramente. Do total dos entrevistados que recebem até dois salários mínimos, 17% se referiram à falta de ética como definidora da corrupção, enquanto 32% dos que possuem mais de dez salários mínimos de renda o fizeram. Tais como os 17% dos de escolaridade fundamental, contra os 34% dos doutores.
Mas, atenção, as diferenças dessa magnitude são muito poucas, na pesquisa, e entre os extremos na distribuição dos entrevistados mais raras ainda.
Eis por que sustento que o resultado sociológico atrativamente relevante da pesquisa é a convergência de opiniões, bem mais do que a dispersão, que tende a ser reduzida e de minguado significado analítico. Duas questões decorrem da interpretação que ofereci. Primeira: quais são os grandes normalizadores da sociedade democrática brasileira contemporânea, estando banidas a repressão e a lavagem cerebral?
Segunda: em uma democracia, quais são as possíveis consequências políticas de uma sociedade sociologicamente normalizada? Tribuna livre.


WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS é cientista político e professor da Universidade Cândido Mendes.


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