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Crítica ao consumo por artistas contemporâneos
ignora o ataque de Maio de 68 ao capitalismo
A fórmula do desvio
JACQUES RANCIÈRE
COLUNISTA DA FOLHA
Um porco cor-de-rosa deitado, feito de silicone, metal e fibra de vidro, levanta
suavemente orelhas, patas
e rabo ao comando de um aparelho
elétrico. Um pouco mais adiante,
outros porcos, estes de latão, copulam alegremente com piratas, à
sombra de coqueiros metálicos, que
enfeitam uma ilha de latão pousada
num mar de resina. Ao redor, na galeria, vêem-se barcos de madeira ou
bustos de piratas em materiais diversos. As paredes da sala estão cobertas de grandes desenhos, feitos a
guache, representando outros piratas de histórias em quadrinhos envolvidos em diversas atividades burlescas ou pornográficas.
No andar superior, acumulam-se
bustos, máscaras ou corpos desmembrados em gesso; montagens
fotográficas nas paredes nos mostram corpos misturados e pintados
de vermelho berrante, que parodiam as cerimônias sangrentas do
acionismo vienense dos anos 60, enquanto o manequim de cera do artista adormecido exibe seu sexo descoberto ao olhar divertido dos adolescentes de passagem.
A exposição, apresentada pela
White Chapel Art Gallery, chama-se
"Lala-Land Parody Paradise" [Paraíso da Paródia Lala-Land] e confirma o gosto de seu autor, Paul
McCarthy, pelas grandes encenações que misturam a iconografia popular dos filmes de animação, dos
quadrinhos ou dos parques de diversão e a dos filmes pornográficos,
com a intenção sempre declarada de
nos revelar o "lado sombrio" das mitologias consumistas, ao mesmo
tempo em que dá livre curso à alegre
energia popular captada pelos ícones do comércio e do poder.
Um pouco mais ao norte, numa
outra galeria do East End londrino,
os irmãos Jake e Dinos Chapman
propõem, em torno dos "Caprichos" de Goya, por eles reproduzidos, modificados e sarapintados,
uma proliferação de desenhos e gravuras nos quais se agita todo um povo de ícones infantis -Chapeuzinho Vermelho, os três porquinhos,
Bambi e uma infinidade de coelhos,
ursos, feiticeiros, duendes e dragões
os mais variados, todos entregues a
atividades perversas.
Do outro lado do Tâmisa, a exposição "Universal Experience" dedica-se às produções artísticas suscitadas pelo fenômeno do turismo de
massa. Nela se destaca, entre um vídeo sobre turistas americanos que
imitam canibais e fotografias de diversos lugares célebres reproduzidos num parque de diversões de Las
Vegas, uma grande instalação de
Thomas Hirschorn, em forma de pirâmide de papelão, na qual se misturam, sobre obeliscos e sarcófagos
igualmente de papelão, imagens de
imprensa da Guerra do Iraque, cópias de estatuetas egípcias e imagens
pornográficas.
Prosseguindo em direção ao oeste,
pode-se visitar a terceira edição da
Frieze Art Fair e ali constatar que o
"retorno da pintura", muito proclamado nos últimos tempos pelos galeristas, obedece basicamente à mesma estética. Quer utilizem técnicas
neo-expressionistas, pós-pop ou
neo-hiper-realistas, os pintores recorrem em massa ou à iconografia
popular e publicitária americana ou
à dos heróis do trabalho soviética e
chinesa, quando não às estampas infantis ou aos cromos religiosos de
antigamente.
Não se sabe muito bem, no limite,
se essa pintura "neo-pós" imita a
iconografia popular e publicitária
kitsch, se imita a pintura que imitava
ontem essa iconografia ou se imita
simplesmente a prática antiquada
da pintura, transformada ela própria num elemento da cultura
kitsch.
Estereótipos da percepção
É o problema colocado por essas
estratégias artísticas que reproduzem ou transformam a iconografia
dominante. Elas se afirmam, às vezes, como um simples jogo. Mas,
com mais freqüência, insistem em
reafirmar uma vocação de crítica
política e social. Elas pretendem reelabor todos esses ícones da infância,
da mercadoria, do comércio e da publicidade para nos fazer perceber os
estereótipos que governam nossa
percepção.
Um termo, sempre em voga, resume tal pretensão: desvio. Ao darem
uma forma plástica monumental às
imagens planas das telas midiáticas
e dos cartazes publicitários, ao acentuarem a vulgaridade das imagens
reinantes, ao transformarem seu
erotismo discreto em pornografia
berrante, os artistas parodistas estariam levando adiante a tradição crítica do desvio tal como era entendido nos anos 60 e 70.
O grande teórico da "sociedade do
espetáculo", Guy Debord [1931-94],
já não havia proposto, com essa finalidade, este conceito: voltar contra
o inimigo suas próprias imagens?
Há alguns anos, em Paris, o centro
Pompidou apresentava uma grande
exposição intitulada "Para Além do
Espetáculo": filmes publicitários,
personagens de mangás, sons de discoteca, balões, carrosséis e brinquedos reciclados associavam-se a um
caubói lúbrico de Paul McCarthy e a
uma estátua neoclássica de Jeff
Koons por ele mesmo como ídolo
pop, para significar a derrisão das
distrações e das imagens kitsch da
cultura de massa.
O problema é que esse tipo de desvio já foi muito praticado, e a iconografia dominante o anula de antemão, ao produzir sua própria derrisão e sua própria paródia.
Mas também não é certo que a referência ao situacionismo e ao pensamento contestatário de Maio de 68
seja muito fiel ao estilo desse pensamento. O novo entusiasmo pelo situacionismo oferece os meios de verificá-lo: Guy Debord entendia por
espetáculo algo mais que a cultura
midiática de massa e, por desvio,
não apenas a repetição em traços
exagerados dos ícone mercantis.
Seus filmes, durante muito tempo
subtraídos ao público por sua vontade mesma, estão reaparecendo,
aliás, em salas de cinema e sendo
editados em DVD.
E quem vê "A Sociedade do Espetáculo" [1973] ou "In Girum Imus
Nocte et Consumimur Igni" [1978]
pode constatar que o espetáculo, para o teórico do situacionismo, era
bem mais que a cultura midiática.
Era o mundo da vida separado dos
indivíduos, apropriado pelas forças
do capitalismo ocidental e da burocracia soviética.
Assim, ele não buscava, nesses filmes, enfatizar a proliferação das
mercadorias e de seus ícones.
Suas imagens noturnas dos "halles" de Paris nada têm a ver com o
amontoado de mercadorias que, em
muitas instalações contemporâneas,
supostamente critica o reinado do
consumo. Elas evocavam nostalgicamente a velha Paris misteriosa dos
passeios surrealistas, que ia ser destruída pelas grandes operações imobiliárias dos anos 70.
E as imagens que ele voltava contra
o inimigo não eram as das publicidades estupidificantes. Eram histórias
de amor, ação e heroísmo contadas
pelos westerns de John Ford, Raoul
Walsh e Nicholas Ray.
Não era por derrisão antiianque
que ele nos mostrava Erroll Flynn
partindo ao ataque contra as tropas
sulistas ou os índios, mas para reivindicar sua bravura no ataque contra o inimigo capitalista e burocrático. E o tom aristocrático e o estilo
elegante de seus comentários estavam muito longe do humor carnavalesco dos artistas de hoje. A oposição global declarada contra a dominação mercantil dispensava o trabalho de copiar-lhe as insígnias.
Certamente havia em Guy Debord
uma pose aristocrática muito particular. Mas, se ele pôde se tornar um
ícone do "pensamento de 68" é porque a forma de contestação da cultura dominante praticada naqueles
anos estava muito distante da que
reivindicam, em nome do desvio, os
artistas de hoje.
Uma outra ocasião de verificar isso
é fornecida pelo filme de Philippe
Garrel, "Les Amants Réguliers" [Os
Amantes Regulares], recentemente
premiado no Festival de Veneza.
Não que se trate de um filme militante que lembraria as verdadeiras
palavras de ordem do combate parisiense de 68. Ao contrário, a distância está no núcleo do filme: distância
entre os grupos jovens dos atores de
hoje e os grupos jovens dos anos 60,
cuja sensibilidade e as maneiras de
ser tentam recuperar; mas distância
também daqueles próprios grupos
em relação ao que lhes acontecia e ao
que procuravam fazer advir na sua
tentativa de "mudar a vida": confusão da noite das barricadas, dividida
entre o amor a reinventar e a fidelidade à subversão artística, desejos
de fuga e seduções da droga.
Os personagens do filme atravessam essas experiências, nas quais se
resume facilmente a história de uma
geração, como que na ponta dos pés,
como que assustados com o ruído
que fizeram por um momento na cena do mundo. O que o filme de Garrel nos restitui de forma perturbadora é a fragilidade, a timidez que estiveram no centro do sonho de transformação daqueles anos. É essa espécie de pudor meditativo no confronto que é tachado, retrospectivamente, de ingenuidade.
Mas talvez haja uma lei mais geral:
os grupos nunca estão realmente
prontos para os grandes confrontos
nos quais se arriscam. Comparada à
falta de habilidade dos jovens heróis
de Garrel, a animação berrante dos
campeões do desvio de hoje se parece mais com a patifaria que acompanha os consentimentos à ordem
existente.
Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" e "A
Partilha do Sensível" (ambos pela ed. 34).
Tradução de Paulo Neves.
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