São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

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Coletânea "71 Contos" reúne as três obras de ficção científica do autor italiano Primo Levi, as quais, porém, não conseguem atingir o mesmo nível de seu clássico "É Isto um Homem?"

Humanidade em negativo

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Um aparelho capaz de produzir versos automaticamente, em qualquer forma poética conhecida. Máquinas que funcionam como uma espécie de xerox tridimensional, criando réplicas quase perfeitas de tudo o que quisermos -animais e seres humanos inclusive. Substâncias químicas indutoras de felicidade psicológica ou de espírito de sacrifício. Pessoas que vivem séculos, graças a técnicas de congelamento. Um medidor mecânico, objetivo, da beleza física dos seres humanos. Vernizes que evitam o mau olhado.
É desse gênero de produtos e descobertas que se alimentam os três livros de ficção científica de Primo Levi que a editora Companhia das Letras colige no volume "71 Contos".
Formado em química pela Universidade de Turim, Primo Levi participava de um movimento de resistência antifascista em dezembro de 1943, quando foi descoberto pelos partidários de Mussolini e deportado para Auschwitz. Seu primeiro livro, "É Isto um Homem?", foi publicado em 1947 e constitui um dos mais importantes relatos já escritos sobre a experiência de sobreviver aos campos de extermínio nazistas.
O extraordinário poder de síntese, de compaixão reflexiva e sobriedade literária daquele pequeno volume de testemunho pessoal (175 páginas na edição brasileira da Rocco) é infelizmente substituído, na maioria dos contos aqui publicados, por uma espécie de crispação satírica, de imediatismo narrativo, de superficialidade sem leveza, que torna bastante irritante, ou pelo menos inócuo, o empenho ficcional do autor.

Perda de impacto
Contribui para essa impressão a circunstância de que "Histórias Naturais", o primeiro livro de ficção científica de Levi, foi publicado em 1966. O que ali aparecia como novidade tecnológica intrigante ou absurda tende a perder impacto diante das descobertas reais -clonagem, transgênicos, antidepressivos, bebês de proveta, internet- que estão no cotidiano de qualquer leitor de jornais hoje em dia.
Uma ou outra história retém, como que involuntariamente, sua força de antecipação: é quando Primo Levi imagina uma espécie de epidemia que atinge os automóveis ou quando supõe que o sistema telefônico possa ser atacado por uma praga virtual de trotes e ligações erradas. Em casos assim, o que surpreende é encontrar o que já sabemos possível (os vírus de computador) num contexto ainda alheio aos sucessos da informática.
Tudo se passaria melhor se os contos de Levi procurassem desenvolver, como ocorre em certos clássicos da ficção científica, as conseqüências mais remotas, os resultados extremos e paradoxais de determinada descoberta.
Os contos de "Histórias Naturais" obedecem, entretanto, a outro tipo de estrutura e de intenção literária. Na maior parte das vezes, o leitor se vê diante de uma situação estranha, de um diálogo inicialmente incompreensível, até o momento em que o autor revela o artefato, a invenção estrambótica na qual o conto se baseava. A história se esgota, assim, quando ficamos conhecendo o invento imaginado; trata-se, sem dúvida, de uma ficção científica em que o interesse ainda está focado na antecipação tecnológica, como nos velhos exemplos de Júlio Verne; claro que, agora, num espírito bem mais crítico e pessimista.
Das geringonças inventadas pelo americano Simpson -personagem caricata, que retorna em vários contos- aos diversos casos de hibridismo biológico propostos em "Desfibragem" (homens com genes de trutas ou esquilos), passando pelos hoje banais bebês de proveta e pelas técnicas de marketing imaginadas no ainda chocante "Escrito na Testa", um fio condutor parece ligar estas histórias às preocupações mais profundas de Primo Levi. Comum a todas estas narrativas, o tema da desumanização do mundo é retrabalhado de inúmeras formas. Trabalhadores-insetos, robôs incipientes, centauros, automóveis dotados de sexualidade, frascos onde se guarda a memória pessoal, sanguessugas que escrevem textos, galinhas que censuram outros: em todas essas situações, como aponta o excelente prefácio de Maurício Santana Dias, é da negação do homem que se trata.
Ainda que indiretamente, retorna-se assim ao centro das preocupações -e ao próprio título- do melhor livro de Primo Levi. Mas o autor de "É Isto um Homem?" felizmente se reconhece em outros momentos desta coletânea de contos.
Depois de "Histórias Naturais" (1966) e "Vício de Forma" (1971), "Lilith", o terceiro livro incluído nesta edição, traz textos mais variados, livres da incômoda armadura ficcional dos anteriores.

Experiência química
Publicado originalmente em 1981, "Lilith" divide-se em três partes. Se "Futuro Anterior" repete, com poucas mudanças, os esquemas da ficção fantástica que já conhecemos, as doze notáveis evocações de "Passado Próximo" e os textos de "Presente Indicativo" -algo entre a crônica e o que poderíamos chamar de "documentário escrito"- valem pelo livro inteiro.
Em "O Desafio da Molécula" somos confrontados, por exemplo, com a possibilidade de uma "narrativa científica" de não-ficção (?), magistralmente levada a cabo pelo autor. Trata-se de uma experiência química que termina não dando certo, num cenário industrial comum, baseada em depoimentos de total simplicidade, da qual Primo Levi sabe extrair, no parágrafo final, uma belíssima e austera conclusão.
Sua imensa arte literária pode ser avaliada, com efeito, no modo com que duas ou três frases dão o fecho moral para cada episódio narrado, circunscrevendo-o numa experiência ao mesmo tempo exemplar e inesgotável, eloqüente, mas impossível de explicar em sua plenitude.
É o que acontece na seqüência de retratos de alguns dos prisioneiros de Auschwitz -o cigano Grigo, o santo Ezra, o adorável Tschler, o melômano Wolf-, que fazem de "Passado Próximo" um conjunto de textos comparável ao que de melhor Primo Levi escreveu, e muito superior aos contos que lhe fazem companhia neste livro.


71 Contos
528 págs., R$ 41 de Primo Levi. Tradução de Maurício Santana Dias. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3707-3500).



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