São Paulo, domingo, 05 de março de 2006

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Desde a Bíblia, história da humanidade pode ser lida como uma incansável luta contra as trevas, primeiro com a fogueira, depois as tochas embebidas em gordura, em seguida a vela e a lamparina até o bico de gás

E a luz enfim se fez

MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

Sabe-se que se está diante de um clássico quando a ele retorna e sempre encontramos uma sabedoria que o tempo não abate. É o que acontece com a obra do historiador e ensaísta português Joel Serrão, um dos primeiros a estabelecer um diálogo mais próximo à historiografia européia do pós-45, em especial com os "Annales", revista francesa de história econômica e social fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre.


O dia surge identifi-cado a algo positivo, ao bem; e a noite ao seu oposto, ao mal; no dizer de Serrão, noites de breu, de tempestade


Tome-se como exemplo o livro "Temas Oitocentistas", publicado em Lisboa, o primeiro volume em 1959 e o segundo em 1962. Entre os tópicos visitados pelo autor encontra-se a experiência da noite na história da humanidade. Tomei conhecimento desses ensaios, pela primeira vez, perambulando pelas ladeiras de Lisboa em companhia de Alberto da Costa e Silva. Defronte um sebo especializado em mapas africanos antigos, o embaixador e historiador comentou sobre as lacunas da historiografia brasileira.
"Dizem que a historiografia portuguesa é muito atrasada. Mas não é. Por exemplo, há muito se fala aqui de uma história da noite" -reparou. E deu como exemplo o livro de Joel Serrão, acrescentando que o ilustre madeirense já fazia um tipo de história que, apenas depois, seria conhecida como história das mentalidades no mundo luso-brasileiro.
Tinha razão o meu querido amigo. Numa época em que a história econômica reinava inconteste no meio historiográfico, não deixava de ser uma ousadia propor uma história da noite.

Receitas de doces
Mas a verdade é que Serrão não era ousado sozinho. O nosso Gilberto Freyre, embora solitariamente não pudesse dar conta de nossas lacunas historiográficas, ainda em 1933 já antecipara muito do que a história das mentalidades e, depois dela, a história cultural, viriam trazer em forma de contribuições ao conhecimento histórico.
Gilberto, afinal, fazia de receitas de doces fontes históricas. E até a própria noite recifense, com seu corolário de fantasmas e assombrações, já fora por ele visitada em "Assombrações do Recife Velho" (1951, Topbooks), onde se atribui o arrefecimento do temor do além em nossos dias ao aparecimento da luz elétrica.
Está escrito no "Gênesis" que no início a Terra estava sem forma e vazia, que as trevas cobriam o abismo quando Deus disse: "Faça-se a luz!", e a luz começou a existir. Deus viu que a luz era boa e separou-a das trevas, chamando à luz dia e às trevas noite. Houve uma tarde e uma manhã: foi o primeiro dia. No relato bíblico está sintetizado muito da experiência humana com a noite, que o historiador português propõe ser tornada um objeto de seu ofício.
O dia surge identificado a algo positivo, ao bem; e a noite ao seu oposto, ao mal. No dizer de Serrão, noites de breu, de tempestade, cortadas aqui e ali e de longe pelos uivos e ladros dos cães, pelos gritos das aves noturnas. E, embora nela caibam furtivos encontros em quartos transformados em ninhos de loucos amantes, a noite insta sobretudo os poetas e assemelhados a enfrentar a incurável solidão de cada ser, para não falar das confidências de penas sem remédio.
Daí que a história humana possa também ser contada como uma incansável luta contra as trevas, primeiro com a fogueira, depois as tochas embebidas em gordura, depois a vela e a lamparina, depois o bico de gás (Londres, 1814; Baltimore, 1817; Paris, 1829) e, finalmente, a iluminação elétrica (Nova York, 1882).

Otimismo
Aos clássicos deve-se respeito, e não há maior respeito à inteligência do que com ela dialogar. Não há como deixar de observar, no ensaio de Serrão, um certo otimismo, a meu ver não de todo justificável. Observe-se o que ele diz, a certa altura:
"Elo de uma multimilenária cadeia de esforços tendentes a desterrar a noite dos lares, das ruas e da própria mente, a luz elétrica permitiu prolongar o trabalho fabril e domiciliar para além do fim do dia, consoante o nosso bel prazer ou nossas necessidades, e só isso. Se fosse só isso, bastaria para atribuirmos a maior importância ao sucesso. Mas há mais: cremos que ela também significou um ponto marcado na luta contra o Medo, um medo quase estrutural que vem do fundo dos tempos. Medo da fome, das trevas e da morte -gerador de guerras, de mitos e de apelos angustiados."
É bem verdade que a invenção da luz elétrica veio alterar muito usos e costumes imemoriais, que se estendem por todos os planos da vida e da psique humana, da alimentação ao lazer, passando por mitos, ritos e incêndios. Basta pensar na utilização da energia elétrica no sistema fabril, que veio colocar o mundo de ponta-cabeça. Mas sobre isso também não é preciso exagerar.
Afinal, fontes históricas dão conta de escravos reunidos em paióis, iluminados por archotes incandescentes, a debulhar o milho pela noite adentro, após mourejar nos campos iluminados pelo sol.
Tampouco se pode dizer ter a noite deixado por completo de ser cúmplice nos tormentos humanos -a aviação norte-americana prefere bombardear seus inimigos nas trevas. Quanto ao medo mui humanamente associado à fome, às trevas e à morte, ainda não se divisa no horizonte o dia em que ele será apenas uma lembrança. Talvez nunca o seja.

Manolo Florentino é professor no departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros livros, "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (ed. Civilização Brasileira). Escreve bimestralmente na seção "Autores", do Mais!.


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