São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2004

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O gênero das multidões

Editores, críticos e escritores ouvidos pelo Mais! apontam as razões do sucesso das biografias no país, como a maior preocupação com o contexto social, mas divergem quanto à dose correta de objetividade e ficcionalização nas obras

DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO

Ele tem apelo popular, um público fiel, vende bem e já se constitui em uma fatia importante dos catálogos das editoras nacionais, tanto grandes quanto pequenas. Mas as razões para o sucesso do gênero biográfico no país são, em parte, discordantes, segundo a opinião de diretores editoriais, críticos literários e biógrafos ouvidos pelo Mais!.
Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, diz que o gênero vem crescendo nos últimos anos em todo o mundo. "O diferencial é que ele sempre foi sucesso no mundo e está crescendo no Brasil especialmente desde os anos 1990", diz.
"Sempre vale a pena investir em biografias", diz Schwarcz, cuja editora publicou os "blockbusters" Ruy Castro e Fernando Morais. "O problema é que custa caro investir, mas o resultado sempre tende a ser muito bom ."
Para Luciana Villas-Boas, da Record, não é qualquer biografia que desperta o interesse do público, a qualidade não é sinônimo de sucesso editorial e o gênero não é muito fácil de trabalhar. "Já fizemos obras de qualidade, elogiadas pela crítica, mas que fracassaram junto do público." Apesar de não parecer satisfeita, ela cita grandes vendagens da editora -"São Francisco de Assis", de Jacques le Goff, vendeu mais de 20 mil exemplares- e tem programados para 2005 os lançamentos de quase uma biografia por mês.
Carlos Augusto Lacerda, da Nova Fronteira -que vendeu mais de 50 mil exemplares de "Churchill", de Roy Jenkins -, diz também não ver um crescimento específico do mercado de biografias. "A biografia é um estilo quente, mas a tendência de crescimento não é nova", diz.
Paulo Roberto Pires, da Ediouro, diz que o mercado é seguro, mas afirma que já se venderam mais biografias no país.
Já a crítica literária Nádia Gotlib, diz que há uma expansão do mercado devido a um "recrudescimento do interesse mais pelo contexto do que pela vida íntima do personagem".


"O relato da vida do outro não é compartimentado; o importante é ter a coragem de ficcionalizar o outro", diz o crítico Silviano Santiago


Para Angel Bojadsen, da Estação Liberdade -uma editora pequena se comparada às gigantes anteriores- , há, sim, um crescimento desse mercado. Após o que considera um sucesso das três principais obras lançadas pela editora, que venderam 2.500 exemplares em média -como a bem cuidada "Carlos Magno", de Jean Favier -, Bojadsen se diz seguro para editar outras: "Essa vendagem já cobre os gastos e permite trabalhar com alguma folga."
Para Villas-Boas, um diferencial da biografia está no fato de o gênero ser um fértil terreno na produção literária brasileira. "A imprensa forma bons autores de biografias no Brasil", diz, citando os jornalistas Fernando Morais e Ruy Castro.
Biógrafo profícuo, Castro define o gênero como um híbrido entre a literatura e o jornalismo. "O método de apuração é jornalístico, mas o estilo permite um esmalte de literatura que torna o texto mais interessante", diz. Segundo ele, o lado da pesquisa define a qualidade do livro. "Quanto mais bem apurada, melhor."
O escritor Zuenir Ventura, autor de "Chico Mendes" e "1968 - O Ano Que Não Terminou", acredita que o mais importante é focar no protagonista, em torno do qual tudo deve girar. "É um gênero difícil porque é preciso encarnar o personagem ", diz. Ele discorda de Castro, alegando impossível ser objetivo. "A biografia é tanto do biografado quanto do escritor, e o retrato é resultado da visão do biógrafo."
Os críticos e escritores ouvidos pelo Mais! dividem o gênero em duas ou até três categorias.
O novo estilo é mais autoral e mescla a biografia com a autobiografia do escritor, diz a crítica paraense Lilia Silvestre Chaves, que está lançando "Mário Faustino - Uma Biografia" (400 págs., R$ 40,00, ed. da Secretaria de Cultura do Pará, tel. 0/ xx/91/219-1218), sobre o poeta piauiense radicado em Belém (PA) e autor de "O Homem e Sua Hora" (Cia. das Letras), morto em 1962 num acidente aéreo nos Andes.
Para ela, "agora entra uma pessoa a mais no texto, o biógrafo. Eu não deixo de participar da biografia, porque ela se mistura com a minha própria vida".
Segundo Chaves, "há momentos em que o biógrafo precisa preencher lacunas na realidade pesquisada, e o faz com a ficção. É ficção, mas poderia ter acontecido. É uma interpretação baseada em documentos, criando pontes metafóricas", diz.
Para Gotlib, o importante numa biografia é não se prender apenas a fatos, mas usá-los a serviço da construção do personagem. "A biografia deve ser o menos ficcional possível, mas se questionar até onde a liberdade da construção do personagem é ficção", diz.
Silviano Santiago, da Universidade Federal Fluminense, vê uma revolução no gênero nos últimos 30 anos. A biografia está deixando de lado as fórmulas para se fortalecer como um gênero autoral. "Não é uma biografia necessariamente organizada a partir de documentos e em busca do que chamam de objetividade, mas que rompe com rótulos e o modelo do romance burguês do século 19 -diferentemente da chamada biografia "canônica"."
Para ele, o primeiro ponto é a subjetividade. "O relato da vida do outro não é compartimentado como sendo do outro, mas fica híbrido entre o biógrafo e o biografado. O importante é ter a coragem de ficcionalizar o outro."
Eneida Maria de Souza, da Universidade Federal de Minas Gerais, crê que as biografias devem se preocupar menos com furos e buscar um texto mais livre, refinado e autoral.
Tentando tornar o gênero literário mais democrático, Chaves reforça um ponto unânime entre os críticos e arremata: "São dois estilos [o jornalístico e o da crítica] diferentes, mas que coexistem havendo espaço no mercado editorial para ambos, cada um com sua importância."


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