São Paulo, Domingo, 06 de Fevereiro de 2000


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A maior virtude de "Milênio" reside na combinação do vasto panorama com o detalhe vivo das vidas individuais
Um inventário multicultural da história

Peter Burke

Agora que cruzamos o limiar de um novo milênio e que os festejos terminaram e que o lixo está sendo recolhido, é um bom momento para perguntar onde estamos e para qual direção rumamos. Para responder a uma tal pergunta, talvez seja instrutivo dar uma boa olhada nos últimos mil anos, a exemplo do que fez Felipe Fernández-Armesto num livro que leva o simples título de "Milênio". Fernández-Armesto é um historiador espanhol que vive em Oxford e que fez seu nome com um estudo sobre Cristóvão Colombo. Esse estudo, concomitante ao quadricentenário comemorado em 1992, destacou com ênfase incomum a auto-imagem e a auto-apresentação do grande explorador. Seu livro "Milênio" também ilustra seu apurado senso de oportunidade: ele foi escrito em 1993 e publicado em várias línguas em 1995. Nele o autor faz o inventário de mil anos de história mundial. "Milênio" é um livro notável em vários aspectos. Ele é extremamente bem informado e preciso. De fato, pude encontrar apenas dois erros concretos em mil páginas, ambos -o que é curioso- sobre o Brasil, confundindo Mato Grosso com Minas Gerais e bandeirantes com bandeiras. Fora isso, encontra-se um breve espaço para falar do açúcar brasileiro, dos jesuítas e dos imigrantes japoneses. Muito mais páginas são consagradas à Argentina, ou pelo menos a Buenos Aires. Mas o propósito do autor não é dar uma quantidade justa de espaço para cada país, e sim ilustrar tendências mediante estudos de caso.

Viajante universal
O livro é extremamente bem escrito: elegante, engenhoso e sutil. O autor desse tijolo carrega com leveza sua erudição. O que torna "Milênio" tão palatável é o talento de Fernández-Armesto tanto para contar histórias quanto para descrever e evocar com vivacidade lugares, momentos e pessoas muito diferentes. Esse historiador universal é também um viajante universal que parece ter visitado quase todos os lugares sobre os quais escreve. As várias ilustrações que o autor escolheu e legendou com cuidado são parte integrante do livro. Embora escreva uma "macrohistória" em todos os sentidos, um cartapácio sobre um vasto período de tempo, Fernández-Armesto jamais perde o sentido "microhistórico" do detalhe significativo. Ele não tem receio de expressar suas posições pessoais (inclusive seu repúdio tanto ao aborto quanto à estatística) nem de introduzir anedotas sobre si próprio e sua família. Um capítulo sobre "a era Elvis" começa com as palavras: "Eu era um garoto antiamericano". "Milênio" é um livro bastante pessoal, mas num certo sentido é também notavelmente neutro. E isso de forma deliberada, já que o autor, desenvolvendo uma idéia corrente no Iluminismo, tenta imaginar como nosso mundo pareceria a pessoas estranhas a ele, a quem chama de os "museólogos galácticos", 10 mil anos futuro adentro. Dessa perspectiva distanciada, quais tendências do último milênio sobreviveriam? O conceito central do livro é o de "iniciativa". A primeira parte, que trata da Idade Média, é chamada "as molas da iniciativa". A segunda parte, sobre os séculos 16 e 17, é intitulada "as molas distendidas"; e a terceira parte (sobre a descolonização e o ressurgimento do islã), "o torcer da iniciativa".

Perspectiva galáctica
O principal enfoque atribuído a esses museólogos é que a chamada "ascensão do Ocidente" foi menos inevitável, menos completa e também durou muito menos do que os historiadores ocidentais geralmente alegam. A famosa expansão européia do século 16 ocorreu, segundo eles ou segundo seu porta-voz Fernández-Armesto, num mundo "já repleto de agressivos competidores" (a história comparada dos impérios é um dos grandes interesses do autor e um dos seus fortes). A "civilização Atlântica" que ela criou "foi extremamente frágil em seus primeiros 300 anos". De especial importância na era da migração através do oceano, sobretudo entre 1870 e 1914, essa civilização foi a partir daí desafiada pela ascensão do Pacífico. Da perspectiva da galáxia, o domínio ocidental talvez não pareça mais que um hiato, um distúrbio do padrão normal de um mundo dominado pela China. Mas o que será, então, de nosso futuro? A maioria dos historiadores acadêmicos evitaria o problema, mas com característica ousadia Fernández-Armesto oferece aos leitores suas especulações, a um tempo animadoras e alarmantes, mas por vezes de maneira inesperada. "O crescimento da população será contido", ele sustenta; de outro lado, em vez do fim da ideologia, "totalitarismos rivais retornarão", "grandes Estados continuarão a fragmentar-se" e "as cidades irão desinchar, (...) revertendo o crescimento monstruoso que deu ao mundo São Paulo e a Cidade do México". Ficamos tentados a perguntar o que os museólogos galácticos pensarão desse livro. Pessoal, por vezes intencionalmente excêntrico, "Milênio" é também um livro do nosso tempo, o produto de um Ocidente fim de século que é cético em relação às certezas tradicionais e atraído por outras culturas. Ele próprio uma mistura cultural de espanhol e inglês de escola pública, Fernández-Armesto está bem qualificado para avaliar o significado dos encontros culturais. "Milênio" é também um livro de seu tempo por evitar a análise estrutural que explica por que certas iniciativas tiveram sucesso.

Micro e macrohistória
Sua maior força está na combinação de macrohistória com microhistória, o vasto panorama com o detalhe vivo, as grandes tendências com as vidas individuais afetadas por tais tendências. Sua maior fraqueza, a meu ver, está em sua recusa em alinhar-se com as idéias de historiadores como Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein, que enxergam a história em termos de sistemas mundiais e relacionam a ascensão do capitalismo, numa parte do mundo, com a escravidão, em outra, e a servidão, em uma terceira. Fernández-Armesto conhece o trabalho deles, mas não quer discutir as questões que eles suscitam.
Não que ele se desinteresse pela vida econômica -ele nos fornece um vivo relato da ascensão do financista Nathan Rotschild a partir de seu lugar favorito num canto da Bolsa de Londres. Contudo, a macrohistória de Fernández-Armesto é uma história em que estruturas e sistemas estão praticamente ausentes, junto com as revoluções que os destruíram. Os episódios de 1789 e 1917, apesar de sua ressonância mundial, mal são notados, e o Holocausto nem sequer é mencionado (embora haja uma referência à servidão e à matança de judeus na França no início da década de 40). Mas seria um pecado concluir uma discussão sobre esse livro sutil e encantador com uma nota crítica. "Milênio" simplesmente tem de ser lido.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "A Arte da Conversação" (Unesp) e "O Renascimento Italiano" (Nova Alexandria), entre outros.
Tradução de José Marcos Macedo.

A OBRA
"Milênio", de Felipe Fernández-Armesto. Ed. Record (tel. 0/xx/21/585-2000), 1.000 págs., R$ 100,00.


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