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+ brasil 500 d.C.
A leitura do "Laacoonte", de Lessing, constitui um dos melhores meios para o
leitor dar-se conta do abismo entre as concepções moderna e modernista da arte
A arte entre o engano e a reflexão
Luiz Costa Lima
O nacionalismo cultural tem
entre seus efeitos danosos a secundariedade concedida à tradução. Ela engendra um duplo preconceito. Primeiro: válida para os que não
têm acesso ao original, a tradução violaria a área da "criação" (poesia e gêneros
literários). Segundo: seria aceitável na
área da reflexão, por não ser ela uma área
que cria na linguagem! Seria preciso um
longo ensaio para analisar-se a série de
clichês que comanda tais preconceitos: a
tradução é impossível, o tradutor é um
traidor, na prosa, a linguagem é um ornato gramaticalmente disciplinado.
Os
clichês têm uma longa história, que tem
por princípio a equivalência renascentista entre arte e imitação (da natureza ou,
conforme Panofsky, da Idéia platônica).
Só o aniquilamento de seu princípio permitiria que se entendesse que traduzir é
uma transposição criadora; que a reflexão, sem ser necessariamente parte da
arte, não há de ser menos criadora.
Essa esquemática entrada é motivada
pela edição em português do "Laacoonte" (1766), de G. Ephraim Lessing (1729-1781), feita por Márcio Seligmann-Silva
(Ed. Iluminuras). Louvar seu trabalho
por torná-lo acessível ao leitor que não
leia o alemão é não só estreito como
mantém os preconceitos intactos. A edição do "Laacoonte" em português é excepcional quer por divulgar uma reflexão sistemática sobre a distinção moderna entre poesia e pintura, quer pela qualidade das notas suplementares do tradutor às do próprio Lessing e, sobretudo,
por sua introdução.
Pois, além de sua competência filológica, o texto "Introdução intradução" se
destaca por sua rara capacidade reflexivo-criadora. Isto é, crítica. Por que crítica? Roçamos em um terceiro preconceito. Usualmente entendida como atividade de um juiz que, de fora, dá seu veredicto sobre uma obra, a crítica era definida por F. Schlegel , no final de "Sobre a
Essência da Crítica" (1804), como "a
aliança íntima da história com a filosofia", fundida a um terceiro termo: a reconstrução do "movimento (Gang) e da
articulação" de uma obra. Por coincidência, o "Sobre a Essência da Crítica"
foi escrito como introdução a um conjunto de obras de Lessing. É o seu próprio andamento que refazemos ao ressaltar a introdução de Seligmann-Silva.
Ao concentrar-se no verso de Horácio
"ut pictura poesis" (a poesia como pintura), Lessing participava de um duplo esforço: (a) aquele que vinha do Renascimento -reconstituir a Antiguidade, isto
é, reconsiderar como ela teria visto a arte;
(b) conduzir aquela reconstituição ao
pensar a arte nos tempos modernos. Esta
segunda meta logo se associaria à questão de a quem conceder a primazia, se
aos antigos ou aos modernos (por sua
menor relevância, no caso de Lessing,
não tocaremos na questão da Querelle
des Anciens et des Modernes).
Destaca-se só a primeira parte da segunda meta: pensar a poesia diante da
pintura, significava para Lessing estabelecer o papel e os limites do "medium"
em que cada uma se cumpria. Integrando-se pois o trabalho de Lessing a uma
demanda iniciada séculos antes, elaborá-lo supõe a reconstrução de suas etapas
principais. Para Seligmann-Silva, fazê-lo
significou retomar o caminho exemplarmente traçado por Rensslaer Lee ("Ut
Pictura Poesia - The Humanistic Theory
of Painting", 1967) e Jacqueline Lichtenstein ("La Couleur Éloquente", 1989), sem
dispor do espaço de um e de outro.
Acompanhemo-lo em seus passos básicos.
O "Paragone", de Da Vinci (1452-1519),
contestava a supremacia que a tradição
assegurava à poesia. Ela passa à pintura,
que, por tratar com signos visíveis, faz
com que o "olho receb(a) as semelhanças como se elas fossem naturais". A inversão tem várias implicações: (a) concedia ao pintor um status que, enquanto
era ele reconhecido como artesão, era
privilégio do poeta-humanista; (b) acentuando a ilusão criada pela semelhança,
estabelecia a equivalência moderna entre
mímesis e imitação; (c) como se comprova pelas múltiplas rubricas do "Paragone" (sobre a anatomia, a ótica, a fisiologia, a hidráulica etc), aproximava a
pintura das ciências nascentes.
Embora a posição de Da Vinci logo encontrasse o obstáculo da Reforma e da
Contra-Reforma, empenhadas em sobrevalorizar a palavra na luta religiosa, a
inversão por ele efetuada não será esquecida. Ao "Paragone" se acrescentará o
contributo de Roger de Piles (1635-1709).
Com o pintor e teórico da arte, a reflexão
tomará outro rumo: além do destaque
do colorido, básico para o início do processo de autonomização da pintura, ressalta o "movimento das paixões, (o) revolver do coração", que ao destaque do
visível acrescenta o papel da expressão
emotiva.
A ênfase tanto no visível como no expressivo será acolhida pela sistematização de Lessing. Ambos assegurarão a
Lessing a primazia que retorna à poesia,
pois, apesar de seus signos, as palavras,
não serem naturais, excedem na ilusão
da "evidentia": "O poeta pode elevar a
esse grau de ilusão também a representação de outros objetos que não os visíveis"
(cap. 15). Destaque-se a propósito a observação de Seligmann-Silva: a valorização da ilusão e da "evidentia" conduz à
"suspensão" do significante quanto ao
significado e ao referente, em contraste
com o barroco e com a poesia (com a arte) contemporânea.
Na impossibilidade de acompanharmos todos que estiveram em diálogo
com Lessing, saltemos para a contribuição do historiador e crítico J.-B. Du Bos
(1670 1742). É dele a surpreendente afirmação: "A ficção não passa por mentira
senão nas obras às quais atribuímos exatamente a verdade dos fatos". Publicada
em obra de 1719, a extraordinária intuição da arte como constitutiva da ficção
continuaria sem eco em Diderot, que,
nos "Salons, 3" (1767), insistiria em que
"dans toute production poétique il y a
toujours um peu de mensonge" (em toda produção poética há sempre um pouco de mentira). A afirmação de Du Bos,
que Seligmann-Silva transcreve, salta,
por assim dizer, sobre sua própria obra,
que continua, a partir da distinção dos
signos entre naturais e arbitrários, a afirmar a superioridade da pintura, pois dotada de maior "evidentia".
Dado nosso curto espaço, enfatize-se
um traço geral: ao passo que os teóricos
que antecedem Lessing o fortalecem na
concepção da arte como "evidentia" e,
direta ou indiretamente, no realce da
poesia, como "evidentia" do visível e do
invisível, excepcionalmente algumas das
afirmações deles levantavam a pista para
a teorização contrária: da arte como não-imitação. Pode-se, pois, tanto entender
com Seligmann-Silva que suas contribuições encaminhavam para a teoria da
imaginação que culminaria na "Crítica
da Faculdade de Julgar" (1790), de Kant,
como para uma teoria mais adequada ao
conhecimento do sensível (expressão
preferível ao termo consagrado, "estética", que remete ao apenas perceptivo).
Nesse sentido, a afirmação de Moses
Mendelssohn, em 1757, tem a mesma excepcionalidade da que reconhecíamos
em Du Bos: "Chama-se um conhecimento de sensível (se) percebemos de uma
vez um grande número de características
de um objeto sem poder separá-las de
modo distinto umas das outras". Isso,
contudo, não impede que Mendelssohn,
amigo e correspondente de Lessing,
mantivesse a idéia de que a arte agrada
pela ilusão ou pelo engano desejado.
Em suma, a leitura do "Laacoonte",
com as notas do autor e do tradutor, junto com a introdução deste, constitui um
dos melhores meios para o leitor, mesmo
o não-especializado, dar-se conta do
abismo entre as concepções moderna e
modernista da arte; assim, ao passo que
o realce moderno da "evidentia" faz que
Lessing louve, no poeta, a rapidez da leitura, o destaque do "significante escrito",
desde Mallarmé e Valéry, antes ressalta a
leitura lenta, repetida, ruminante. A reflexão que se lhes segue completará a
destruição do topos "ut pictura poesis" e
de sua base na imitação. Só muito recentemente, esta, fundada na auto-reflexão
do signo, será, de sua parte, posta em
questão. Mas isso já nos levaria além do
livro comentado.
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia
Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mimesis" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve mensalmente
na seção "Brasil 500 d.C.".
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