São Paulo, Domingo, 06 de Fevereiro de 2000


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+ política
Imerso numa sociedade que privilegia o visual, o homem moderno abdicou da razão e caiu num torpor de incerteza e apreensão
Letargia da insegurança

Tarso Genro
especial para a Folha

O atual processo de dominação integra o empobrecimento e a miséria com a pulsão pelo consumo e consegue fragmentar as inconformidades coletivas, instigando uma série de "saídas" puramente individuais, que inclusive refletem a fragmentação do trabalho no processo de produção e a mercantilização do modo de vida (1). As "guerras de posição" dos trabalhadores e seus aliados, no período social-democrata, conformavam uma cultura política com razoável capacidade de articulação com os seus sujeitos-destinatários: os trabalhadores, os que adotavam o "ponto de vista" dos trabalhadores, os intelectuais emancipacionistas. Todos tinham referências sólidas para contrastar a sua "práxis" com um outro lado que era visível, em seu modo de vida e em sua capacidade de coerção. Assim, podiam escolher os seus parceiros de luta radical ou reformista, separando-se e demarcando-se, seja para confrontar, dialogar ou impor.

Impotência da esquerda
Nos últimos anos, a crescente dissolução da velha sociedade de classes e a organização material e ideológica de uma nova sociedade de classes, ainda mais dura e mais elitizada, alterou as formas de controle social e os padrões ideológicos e culturais correspondentes. É surpreendente a impotência da maior parte da esquerda para enfrentá-la. Mormente porque a dupla problemática -da informação e da comunicação- já está na base das reformas e revoluções da modernidade. É só lembrar a importância da literatura popular e da integração nacional pelo rádio, para que transitassem junto aos trabalhadores, as idéias da igualdade e da democracia. Aquela era uma sociedade que se complexificava, mas as idéias de emancipação acompanhavam a sua complexidade. É possível dizer que a "demarcação" e a diferenciação de idéias-base acompanhou, portanto, as lutas reformistas e revolucionárias contemporâneas. Os confrontos, então, se resolviam pela revolução (Rússia), pelas reformas (Países Baixos, Inglaterra) ou por ambas (Alemanha): igualdade, desigualdade; autonomia, hierarquia; coletivo, individual; nação, império; solidariedade, individualismo, eis as antíteses que unificavam ou confrontavam, mas, de qualquer forma, "demarcavam" as classes sociais da sociedade industrial. Naquela etapa, a integração social produzida pelas reformas que "preveniam" as lutas mais agudas não dissolvia os campos, antes afirmava a identidade das partes "contratantes". Como dizia Gramsci, a adaptação aos novos métodos de trabalho não poderia dar-se somente pela coerção, que deveria "ser sabiamente combinada com a persuasão e o consenso" (2). Os consensos geravam entre as classes acordos, que precisavam partes legitimadas e identificáveis. Os sujeitos de "representação", as organizações operárias, os partidos políticos, as organizações empresariais movimentavam-se consolidando as identidades. Esse processo se apoiava nas necessidades do capitalismo para se estabilizar e, ao mesmo tempo, coincidia com a necessidade de identidade dos trabalhadores, para demandarem reformas ou impulsionarem a revolução. É possível dizer que a "demarcação", nesse contexto, não só era uma escolha da revolução ou da reforma, mas também era uma necessidade, tanto da reforma como da própria continuidade do modo de produção capitalista. Não importava que tal fato abrisse mais ou menos frestas para as transformações sociais "perigosas" para as classes dominantes, pois o importante era que a "demarcação" constituía sujeitos, em ambos os lados, e, quando os reunia, construía consensos que afirmavam o poder de classe pela via democrática. O sentido da história nesse processo -de uma história de racionalidades contrapostas- se fazia presente em cada embate.

Produzir o presente
Cada episódio compunha, no imaginário das classes, um passado articulado e um futuro articulável. Seja na dominação estável e consensual, seja nos movimentos que tinham suas propostas baseadas no homem coletivo, "pré-visto" no proletariado como "classe-parteira" do bem absoluto: produzir o presente com ações coletivas era compreender o passado e experimentar algo do futuro. O mero viver ou o "ver" não era "compreender", pois o compreender já era o transformar, inclusive para conservar. A racionalidade moderna foi construída (3) contra a simplificação obscurantista de que "ver é compreender". Na base da ideologia medieval, que resultou na demonização de determinados fenômenos naturais ou psíquicos, está precisamente a identidade mecânica da percepção sensorial com a sua imediata "classificação". Esta realiza o conceito como dogma: "possessão", "exorcizar", "presença divina". Nessa identificação sem nenhuma mediação da razão, há uma falsa ontologia e uma verdadeira ideologia naturalista-impressionista. Seu método descarta qualquer teoria e qualquer tipo de operação conceitual: o "conceito" é o visto, acolhido sem mediações.

Ver é compreender
A possibilidade de produção da informação pelos meios televisivos em tempo quase real, como uma espécie de "história em marcha", cria no indivíduo (e transforma-se em fenômeno coletivo) a simplificação de que o mero "visual" do fato já é a sua explicação. É a volta ao "ver é compreender"! A partir do domínio exercido pela informação visual manipulada da televisão o acontecimento não tem mais alcance nem conexões.
Ou melhor, a sua conexão é a conexão com a cotidianidade e ela se esgota nela mesma: sem historicidade e sem extensões fora da Imediatidade.
O "presente" é mera inserção dos acontecimentos da vida numa sequência de fatos sem hierarquia e sem valores, construídos pela informação manipulatória que acompanha o fato visto, gerador de um concreto "descartável". A memória desaparece pelas infinitas superposições de outros tantos fatos, igualmente desconectados entre si, igualmente "descartáveis" e igualmente vinculados a um só valor, que já fez do presente o futuro: a "estabilidade" como necessidade da globalização.
O que se coloca como enigma neste fim de século é se a mera demarcação (não a ausência de demarcação, mas a mera demarcação) é capaz de sustentar uma política que proporcione condições para o enfrentamento com o totalitarismo neoliberal. O problema, não respondido pela nossa "práxis", é que no imaginário social a destruição do presente é sempre uma destruição para pior, pois a destruição atinge o mais caro "patrimônio" de cada um, que é o compartilhar solidariamente alienado do mundo, num presente que também já é futuro imediato.
Para analisar essa questão deve-se levar em conta que as fronteiras entre as classes já não estão mais demarcadas da mesma forma como antigamente.
De um lado, porque as "não-classes" -da intermitência, da exclusão, da precariedade- são as que mais pesam como "formadoras de opinião" eleitoral e também para os movimentos sociais extraparlamentares; de outro, porque as próprias classes hegemônicas já não estão mais alicerçadas na ideologia burguesa "clássica", com o seu manto fáustico-produtivista. A ausência de fronteiras nítidas e definidas entre as classes, do ponto de vista cultural e psicológico, não significa -porém-uma maior proximidade entre elas, mas uma maior fragmentação. Uma fragmentação que não só desconstituiu os valores tradicionais que as unificavam e as contrapunham, mas também determinou que, ao invés de elas se aproximarem pela contradição negociada ou explosiva, passassem a afastar-se pela recíproca diluição, o que obstrui a "força decisória da política". Os projetos do período "clássico" de dominação da classe burguesa tradicional e os projetos e as práticas políticas de resistência das classes trabalhadoras estão, em consequência, estruturalmente afetados. Ambos apoiavam-se em identidades hoje desorganizadas pelas mutações econômico-sociais, pela diluição da sua unidade contraditória e, cada vez mais, seus interesses se comunicam apenas pela violência fora da política ou por meio de negociações puramente corporativas. A incerteza também confere uma instabilidade extraordinária aos novos dominadores, associados aos destinos do capital dinheiro, pois se eles têm força suficiente para criar as crises que eles mesmo fruem como "acumulação sem trabalho", por meio das Bolsas, eles também têm cada vez menos controle sobre o seu destino estratégico.

Escândalos e truques
Do outro lado, aos trabalhadores e aos excluídos resta a letargia da insegurança, anestesiada pela ameaça de uma instabilidade que lhes é ainda mais demolidora: "O trato público com a incerteza converte-se no autêntico conteúdo da política" (4). Se corretas estas afirmações, delas se pode deduzir que a mera "demarcação" aumenta a incerteza e, mais do que a demarcação isolada -como propaganda ou método de combater politicamente-, contribui para o agrupamento da sociedade apenas em torno dos valores hegemônicos, pois ela aumenta a insegurança.
A disputa pela hegemonia na sociedade, como consequência, deve subordinar as ações demarcatórias e tornar predominantes as ações que orientem indivíduos e grupos sociais, com projetos políticos que combatam a incerteza.
É incrível como Gramsci, em sua época, rastreou essas questões. Ao tratar das lutas sociais numa sociedade já muito mais complexa do que a sociedade russa do início do século, ele já criticava o denuncismo -forma tradicional de "demarcação"-, cuja "atividade crítica se reduzia a desvendar truques, a suscitar escândalos, a vasculhar a vida privada de homens representativos", esquecendo uma outra proposição da filosofia da "práxis": que as "crenças populares", ou as crenças do tipo daquelas, "têm a validade de forças materiais" (5).
Não é gratuito que boa parte da imprensa adote um denuncismo generalizado e, ao mesmo tempo, recuse-se sistematicamente a discutir alternativas ao neoliberalismo. Cumpre a todos aqueles que não desistiram dos ideais utópicos da igualdade e da liberdade resgatar a força da política, dando novas energias e nova vitalidade ao processo democrático e às lutas pela igualdade. Começando pela atualização da sua linguagem política e pela modernização do projeto emancipatório.

Notas
1. Arantes, Paulo Eduardo, "Sofística da Assimilação", in revista "praga", nº 8, agosto de 1999, Ed. Hucitec, pág. 82.
2. Gramsci, Antonio, "Obras Escolhidas", vol. 2, Lisboa, Editorial Estampa, 1974, pág. 175.
3. Ramonet, Ignácio. "Pensamiento Único y Nuevos Amos del Mundo", in "Cómo Nos Venden la Moto", Barcelona, Icaria/ Más Madera, 1997, pág. 87.
4. Dubiel, Helmut, "Pero Qué Es Hoy Todavia de Izquierdas?", in "La Invención y la Herencia", Santiago (Chile), "Cuadernos Arcis/Lom", 1996, pág. 69.
5.Gramsci, Antonio, "Obras Escolhidas", Lisboa, Editorial Estampa, 1974, vol. I, pág. 310.


Tarso Genro é advogado, membro do Diretório Nacional do PT e coordenador do Conselho Político da Frente Democrática e Popular. Foi prefeito de Porto Alegre (RS) de 1993 a 96 e deputado federal de 1989 a 90. É autor de "Utopia Possível" (Ed. Artes e Ofícios) e "O Futuro por Armar" (Ed. Vozes), entre outros livros.


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