|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ política
Imerso numa sociedade que privilegia o visual, o homem moderno
abdicou da razão e caiu num torpor de incerteza e apreensão
Letargia da insegurança
Tarso Genro
especial para a Folha
O atual processo de dominação integra o empobrecimento e a miséria
com a pulsão pelo consumo e consegue
fragmentar as inconformidades coletivas, instigando uma série de "saídas" puramente individuais, que inclusive refletem a fragmentação do trabalho no processo de produção e a mercantilização
do modo de vida (1).
As "guerras de posição" dos trabalhadores e seus aliados, no período social-democrata, conformavam uma cultura
política com razoável capacidade de articulação com os seus sujeitos-destinatários: os trabalhadores, os que adotavam
o "ponto de vista" dos trabalhadores, os
intelectuais emancipacionistas.
Todos tinham referências sólidas para
contrastar a sua "práxis" com um outro
lado que era visível, em seu modo de vida
e em sua capacidade de coerção. Assim,
podiam escolher os seus parceiros de luta radical ou reformista, separando-se e
demarcando-se, seja para confrontar,
dialogar ou impor.
Impotência da esquerda
Nos últimos anos, a crescente dissolução da velha sociedade de classes e a organização
material e ideológica de uma nova sociedade de classes, ainda mais dura e mais
elitizada, alterou as formas de controle
social e os padrões ideológicos e culturais correspondentes. É surpreendente a
impotência da maior parte da esquerda
para enfrentá-la. Mormente porque a
dupla problemática -da informação e
da comunicação- já está na base das reformas e revoluções da modernidade. É
só lembrar a importância da literatura
popular e da integração nacional pelo rádio, para que transitassem junto aos trabalhadores, as idéias da igualdade e da
democracia. Aquela era uma sociedade
que se complexificava, mas as idéias de
emancipação acompanhavam a sua
complexidade.
É possível dizer que a "demarcação" e a
diferenciação de idéias-base acompanhou, portanto, as lutas reformistas e revolucionárias contemporâneas. Os confrontos, então, se resolviam pela revolução (Rússia), pelas reformas (Países Baixos, Inglaterra) ou por ambas (Alemanha): igualdade, desigualdade; autonomia, hierarquia; coletivo, individual; nação, império; solidariedade, individualismo, eis as antíteses que unificavam ou
confrontavam, mas, de qualquer forma,
"demarcavam" as classes sociais da sociedade industrial.
Naquela etapa, a integração social produzida pelas reformas que "preveniam"
as lutas mais agudas não dissolvia os
campos, antes afirmava a identidade das
partes "contratantes". Como dizia
Gramsci, a adaptação aos novos métodos de trabalho não poderia dar-se somente pela coerção, que deveria "ser sabiamente combinada com a persuasão e
o consenso" (2).
Os consensos geravam entre as classes
acordos, que precisavam partes legitimadas e identificáveis. Os sujeitos de "representação", as organizações operárias,
os partidos políticos, as organizações
empresariais movimentavam-se consolidando as identidades.
Esse processo se apoiava nas necessidades do capitalismo para se estabilizar
e, ao mesmo tempo, coincidia com a necessidade de identidade dos trabalhadores, para demandarem reformas ou impulsionarem a revolução.
É possível dizer que a "demarcação",
nesse contexto, não só era uma escolha
da revolução ou da reforma, mas também era uma necessidade, tanto da reforma como da própria continuidade do
modo de produção capitalista. Não importava que tal fato abrisse mais ou menos frestas para as transformações sociais "perigosas" para as classes dominantes, pois o importante era que a "demarcação" constituía sujeitos, em ambos
os lados, e, quando os reunia, construía
consensos que afirmavam o poder de
classe pela via democrática. O sentido da
história nesse processo -de uma história de racionalidades contrapostas- se
fazia presente em cada embate.
Produzir o presente
Cada episódio
compunha, no imaginário das classes,
um passado articulado e um futuro articulável. Seja na dominação estável e consensual, seja nos movimentos que tinham suas propostas baseadas no homem coletivo, "pré-visto" no proletariado como "classe-parteira" do bem absoluto: produzir o presente com ações coletivas era compreender o passado e experimentar algo do futuro. O mero viver ou
o "ver" não era "compreender", pois o
compreender já era o transformar, inclusive para conservar.
A racionalidade moderna foi construída (3) contra a simplificação obscurantista de que "ver é compreender". Na base da ideologia medieval, que resultou na
demonização de determinados fenômenos naturais ou psíquicos, está precisamente a identidade mecânica da percepção sensorial com a sua imediata "classificação". Esta realiza o conceito como
dogma: "possessão", "exorcizar", "presença divina".
Nessa identificação sem nenhuma mediação da razão, há uma falsa ontologia e
uma verdadeira ideologia naturalista-impressionista. Seu método descarta
qualquer teoria e qualquer tipo de operação conceitual: o "conceito" é o visto,
acolhido sem mediações.
Ver é compreender
A possibilidade
de produção da informação pelos meios
televisivos em tempo quase real, como
uma espécie de
"história em marcha", cria no indivíduo (e transforma-se em fenômeno coletivo) a simplificação de que o mero
"visual" do fato já é
a sua explicação. É a
volta ao "ver é compreender"! A partir
do domínio exercido pela informação visual manipulada
da televisão o acontecimento não tem
mais alcance nem conexões.
Ou melhor, a sua conexão é a conexão
com a cotidianidade e ela se esgota nela
mesma: sem historicidade e sem extensões fora da Imediatidade.
O "presente" é mera inserção dos
acontecimentos da vida numa sequência
de fatos sem hierarquia e sem valores,
construídos pela informação manipulatória que acompanha o fato visto, gerador de um concreto "descartável". A memória desaparece pelas infinitas superposições de outros tantos fatos, igualmente desconectados entre si, igualmente "descartáveis" e igualmente vinculados a um só valor, que já fez do presente
o futuro: a "estabilidade" como necessidade da globalização.
O que se coloca como enigma neste fim
de século é se a mera demarcação (não a
ausência de demarcação, mas a mera demarcação) é capaz de sustentar uma política que proporcione condições para o
enfrentamento com o totalitarismo neoliberal. O problema, não respondido pela
nossa "práxis", é que no imaginário social a destruição do presente é sempre
uma destruição para pior, pois a destruição atinge o mais caro "patrimônio" de
cada um, que é o compartilhar solidariamente alienado do mundo, num presente que também já é futuro imediato.
Para analisar essa questão deve-se levar em conta que as fronteiras entre as
classes já não estão mais demarcadas da
mesma forma como antigamente.
De um lado, porque as "não-classes"
-da intermitência, da exclusão, da precariedade- são as que mais pesam como "formadoras de opinião" eleitoral e
também para os movimentos sociais extraparlamentares; de outro, porque as
próprias classes hegemônicas já não estão mais alicerçadas na ideologia burguesa "clássica", com o seu manto fáustico-produtivista.
A ausência de fronteiras nítidas e definidas entre as classes, do ponto de vista
cultural e psicológico, não significa
-porém-uma maior proximidade entre elas, mas uma maior fragmentação.
Uma fragmentação que não só desconstituiu os valores tradicionais que as unificavam e as contrapunham, mas também
determinou que, ao invés de elas se aproximarem pela contradição negociada ou
explosiva, passassem a afastar-se pela recíproca diluição, o que obstrui a "força
decisória da política".
Os projetos do período "clássico" de
dominação da classe burguesa tradicional e os projetos e as práticas políticas de
resistência das classes trabalhadoras estão, em consequência, estruturalmente
afetados. Ambos apoiavam-se em identidades hoje desorganizadas pelas mutações econômico-sociais, pela diluição da
sua unidade contraditória e, cada vez
mais, seus interesses se comunicam apenas pela violência fora da política ou por
meio de negociações puramente corporativas. A incerteza também confere uma
instabilidade extraordinária aos novos
dominadores, associados aos destinos
do capital dinheiro, pois se eles têm força
suficiente para criar as crises que eles
mesmo fruem como "acumulação sem
trabalho", por meio das Bolsas, eles também têm cada vez menos controle sobre
o seu destino estratégico.
Escândalos e truques
Do outro lado, aos trabalhadores e aos excluídos resta a letargia da insegurança, anestesiada
pela ameaça de uma instabilidade que
lhes é ainda mais demolidora: "O trato
público com a incerteza converte-se no
autêntico conteúdo da política" (4). Se
corretas estas afirmações, delas se pode
deduzir que a mera "demarcação" aumenta a incerteza e, mais do que a demarcação isolada -como propaganda
ou método de combater politicamente-, contribui para o agrupamento da
sociedade apenas em torno dos valores
hegemônicos, pois ela aumenta a insegurança.
A disputa pela hegemonia na sociedade, como consequência, deve subordinar
as ações demarcatórias e tornar predominantes as ações que orientem indivíduos e grupos sociais, com projetos políticos que combatam a incerteza.
É incrível como Gramsci, em sua época, rastreou essas questões. Ao tratar das
lutas sociais numa sociedade já muito
mais complexa do que a sociedade russa
do início do século, ele já criticava o denuncismo -forma tradicional de "demarcação"-, cuja "atividade crítica se
reduzia a desvendar truques, a suscitar
escândalos, a vasculhar a vida privada de
homens representativos", esquecendo
uma outra proposição da filosofia da
"práxis": que as "crenças populares", ou
as crenças do tipo daquelas, "têm a validade de forças materiais" (5).
Não é gratuito que boa parte da imprensa adote um denuncismo generalizado e, ao mesmo tempo, recuse-se sistematicamente a discutir alternativas ao
neoliberalismo. Cumpre a todos aqueles
que não desistiram dos ideais utópicos
da igualdade e da liberdade resgatar a
força da política, dando novas energias e
nova vitalidade ao processo democrático
e às lutas pela igualdade. Começando pela atualização da sua linguagem política e
pela modernização do projeto emancipatório.
Notas
1. Arantes, Paulo Eduardo, "Sofística da Assimilação", in revista "praga", nº 8, agosto de 1999, Ed.
Hucitec, pág. 82.
2. Gramsci, Antonio, "Obras Escolhidas", vol. 2,
Lisboa, Editorial Estampa, 1974, pág. 175.
3. Ramonet, Ignácio. "Pensamiento Único y Nuevos Amos del Mundo", in "Cómo Nos Venden la
Moto", Barcelona, Icaria/ Más Madera, 1997, pág.
87.
4. Dubiel, Helmut, "Pero Qué Es Hoy Todavia de Izquierdas?", in "La Invención y la Herencia", Santiago (Chile), "Cuadernos Arcis/Lom", 1996, pág. 69.
5.Gramsci, Antonio, "Obras Escolhidas", Lisboa,
Editorial Estampa, 1974, vol. I, pág. 310.
Tarso Genro é advogado, membro do Diretório Nacional do PT e coordenador do Conselho Político da Frente Democrática e Popular. Foi prefeito de Porto Alegre
(RS) de 1993 a 96 e deputado federal de 1989 a 90. É
autor de "Utopia Possível" (Ed. Artes e Ofícios) e "O Futuro por Armar" (Ed. Vozes), entre outros livros.
Texto Anterior: + brasil 500 d.c. - Luiz Costa Lima: A arte entre o engano e a reflexão Próximo Texto: + livros - Marcelo Coelho: A engrenagem do terror Índice
|