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"Eichmann em Jerusalém", de Hannah Arendt, investiga como a violência do Estado consegue anular a moral individual e fazer de um homem medíocre um assassino
A engrenagem do terror
Marcelo Coelho
da Equipe de Articulistas
Adolf Eichmann foi responsável pelo transporte de
milhões de judeus aos campos de extermínio nazistas. Com a derrota de Hitler, fugiu para a Argentina,
de onde foi sequestrado em maio de 1960, levado a julgamento e enforcado em Israel.
Este livro relata o julgamento de Eichmann. Originalmente uma série de reportagens publicada na revista
"New Yorker", em 1963, é até hoje uma referência indispensável no pensamento político do século 20.
Sua autora, Hannah Arendt (1906-1975), não se enquadra facilmente nas correntes ideológicas que marcaram os últimos cem anos. Antipática ao marxismo, liberal demais para os conservadores e conservadora demais para os liberais, a atitude intelectual de Hannah
Arendt parece ser sempre a de uma insatisfação crítica;
é como se ela não conseguisse parar de pensar -e isso,
sem dúvida, tende em algumas passagens a deixar insatisfeito o próprio leitor, se este preferir caracterizações
claras e taxativas às nuances de sua argumentação.
Não que "Eichmann em Jerusalém" seja um texto
complicado e inconclusivo. Ao contrário, apesar de
constituir-se numa cobertura extensa e detalhada da
trajetória do criminoso nazista e dos problemas legais
envolvidos em seu julgamento, é um livro do qual não
se quer perder uma só linha, tantas as surpresas e inquietações que provoca.
Na época da publicação do livro, Hannah Arendt chegou a ser acusada de ter simpatia pelo réu -o que não é
verdade. Mas a autora não se contentou em simplesmente considerar Eichmann um mentiroso, um cínico,
um carrasco sanguinário. Em geral preferiu -e isto é o
que torna seu trabalho fascinante- tomar ao pé da letra as declarações de Eichmann, atacando com insistência seus acusadores, seus defensores, os juízes e mesmo
as testemunhas.
Dor no coração
Eichmann diz, no julgamento, que
nunca teve ódio dos judeus, que "nunca matou ninguém" e que só poderia ser incriminado por ter ajudado
no massacre, coisa que fez com dor no
coração, mas com a consciência limpa.
Arendt comenta: "A defesa não prestou
a menor atenção à teoria do próprio
Eichmann, mas a acusação perdeu muito
tempo num mal-sucedido esforço para
provar que Eichmann, pelo menos uma
vez, matara com as próprias mãos um
menino judeu na Hungria".
O que seria, para a autora, "prestar
atenção à teoria do próprio Eichmann"? Obviamente,
isso não significa que o réu devesse ser absolvido. O que
há de monstruoso em Eichmann, segundo a argumentação do livro, é exatamente sua ausência de ódio, o rigor burocrático com que desempenhou suas funções, a
plena consciência que tinha do que fazia.
Carreirismo, obediência e um sentimento de inferioridade social diante de seus "colegas de trabalho" fizeram, entretanto, daquele homem medíocre um assassino. Mais empenhado até do que o seu próprio chefe,
Himmler, que, com a proximidade da derrota, tentou
abrir algumas exceções à "Solução Final" com o propósito de negociar com as tropas aliadas.
A análise de Hannah Arendt não se esgota na psicologia de Eichmann, embora passagens brilhantes do livro
se dediquem ao perfil do "obersturmmbahnfuehrer" da
SS. A "banalidade do Mal" a que se refere o subtítulo do
livro aponta, mais profundamente, para o que há de específico no sistema político totalitário. A engrenagem
burocrática, o terror de Estado e a máquina propagandística vêm simplesmente anular as questões de consciência do indivíduo -não de todos, é claro-, fazendo
com que ele considere "certo" e "normal" os crimes
mais repulsivos.
O que não significa eximir a culpa individual de um
Eichmann. Ele cumpria "ordens superiores"? Sem dúvida. Mas o fato é que cumpria.
O juízo como guia
Vale a pena citar uma das passagens finais do livro, que ilustra bem o estilo de argumentação da autora: "O que exigimos nesses julgamentos, em que os réus cometeram crimes "legais", é que os
seres humanos sejam capazes de diferenciar o certo do
errado mesmo quando tudo o que têm para guiá-los é o
seu próprio juízo, que, além do mais, pode estar inteiramente em conflito com o que eles devem considerar como opinião unânime de todos a sua volta. E essa questão é ainda mais séria quando sabemos que os poucos
que não foram suficientemente "arrogantes" para confiar em seu próprio julgamento não eram, de maneira
nenhuma, os mesmos que continuavam a se nortear pelos velhos valores ou que se nortearam por crenças religiosas (...), os poucos ainda capazes de
distinguir certo e errado guiavam-se
apenas por seus próprios juízos".
E é este ponto, diz a autora, que parece
ter causado espanto nos que criticaram o
texto quando de sua primeira publicação: "Como se um instinto nas mais elementares questões de moralidade fosse
realmente a última coisa a se esperar de
nosso tempo".
Eichmann em Jerusalém
344 págs., R$ 29,00
de Hannah Arendt. Tradução
de José Rubens Siqueira. Companhia das Letras (r. Bandeira
Paulista, 702, conjunto 72, CEP
04532-002, SP, tel. 0/xx/11/
866-0801).
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