São Paulo, Domingo, 06 de Fevereiro de 2000


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"Eichmann em Jerusalém", de Hannah Arendt, investiga como a violência do Estado consegue anular a moral individual e fazer de um homem medíocre um assassino
A engrenagem do terror

Marcelo Coelho
da Equipe de Articulistas

Adolf Eichmann foi responsável pelo transporte de milhões de judeus aos campos de extermínio nazistas. Com a derrota de Hitler, fugiu para a Argentina, de onde foi sequestrado em maio de 1960, levado a julgamento e enforcado em Israel. Este livro relata o julgamento de Eichmann. Originalmente uma série de reportagens publicada na revista "New Yorker", em 1963, é até hoje uma referência indispensável no pensamento político do século 20. Sua autora, Hannah Arendt (1906-1975), não se enquadra facilmente nas correntes ideológicas que marcaram os últimos cem anos. Antipática ao marxismo, liberal demais para os conservadores e conservadora demais para os liberais, a atitude intelectual de Hannah Arendt parece ser sempre a de uma insatisfação crítica; é como se ela não conseguisse parar de pensar -e isso, sem dúvida, tende em algumas passagens a deixar insatisfeito o próprio leitor, se este preferir caracterizações claras e taxativas às nuances de sua argumentação. Não que "Eichmann em Jerusalém" seja um texto complicado e inconclusivo. Ao contrário, apesar de constituir-se numa cobertura extensa e detalhada da trajetória do criminoso nazista e dos problemas legais envolvidos em seu julgamento, é um livro do qual não se quer perder uma só linha, tantas as surpresas e inquietações que provoca. Na época da publicação do livro, Hannah Arendt chegou a ser acusada de ter simpatia pelo réu -o que não é verdade. Mas a autora não se contentou em simplesmente considerar Eichmann um mentiroso, um cínico, um carrasco sanguinário. Em geral preferiu -e isto é o que torna seu trabalho fascinante- tomar ao pé da letra as declarações de Eichmann, atacando com insistência seus acusadores, seus defensores, os juízes e mesmo as testemunhas.

Dor no coração
Eichmann diz, no julgamento, que nunca teve ódio dos judeus, que "nunca matou ninguém" e que só poderia ser incriminado por ter ajudado no massacre, coisa que fez com dor no coração, mas com a consciência limpa. Arendt comenta: "A defesa não prestou a menor atenção à teoria do próprio Eichmann, mas a acusação perdeu muito tempo num mal-sucedido esforço para provar que Eichmann, pelo menos uma vez, matara com as próprias mãos um menino judeu na Hungria". O que seria, para a autora, "prestar atenção à teoria do próprio Eichmann"? Obviamente, isso não significa que o réu devesse ser absolvido. O que há de monstruoso em Eichmann, segundo a argumentação do livro, é exatamente sua ausência de ódio, o rigor burocrático com que desempenhou suas funções, a plena consciência que tinha do que fazia. Carreirismo, obediência e um sentimento de inferioridade social diante de seus "colegas de trabalho" fizeram, entretanto, daquele homem medíocre um assassino. Mais empenhado até do que o seu próprio chefe, Himmler, que, com a proximidade da derrota, tentou abrir algumas exceções à "Solução Final" com o propósito de negociar com as tropas aliadas. A análise de Hannah Arendt não se esgota na psicologia de Eichmann, embora passagens brilhantes do livro se dediquem ao perfil do "obersturmmbahnfuehrer" da SS. A "banalidade do Mal" a que se refere o subtítulo do livro aponta, mais profundamente, para o que há de específico no sistema político totalitário. A engrenagem burocrática, o terror de Estado e a máquina propagandística vêm simplesmente anular as questões de consciência do indivíduo -não de todos, é claro-, fazendo com que ele considere "certo" e "normal" os crimes mais repulsivos. O que não significa eximir a culpa individual de um Eichmann. Ele cumpria "ordens superiores"? Sem dúvida. Mas o fato é que cumpria.

O juízo como guia
Vale a pena citar uma das passagens finais do livro, que ilustra bem o estilo de argumentação da autora: "O que exigimos nesses julgamentos, em que os réus cometeram crimes "legais", é que os seres humanos sejam capazes de diferenciar o certo do errado mesmo quando tudo o que têm para guiá-los é o seu próprio juízo, que, além do mais, pode estar inteiramente em conflito com o que eles devem considerar como opinião unânime de todos a sua volta. E essa questão é ainda mais séria quando sabemos que os poucos que não foram suficientemente "arrogantes" para confiar em seu próprio julgamento não eram, de maneira nenhuma, os mesmos que continuavam a se nortear pelos velhos valores ou que se nortearam por crenças religiosas (...), os poucos ainda capazes de distinguir certo e errado guiavam-se apenas por seus próprios juízos".
E é este ponto, diz a autora, que parece ter causado espanto nos que criticaram o texto quando de sua primeira publicação: "Como se um instinto nas mais elementares questões de moralidade fosse realmente a última coisa a se esperar de nosso tempo".



Eichmann em Jerusalém
344 págs., R$ 29,00 de Hannah Arendt. Tradução de José Rubens Siqueira. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/ 866-0801).




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