São Paulo, domingo, 6 de abril de 1997.

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ALEMANHA
O país de 3 milhões de ravers

SILVIA BITTENCOURT
especial para a Folha, de Berlim

Em julho de 1989, alguns meses antes da queda do Muro de Berlim, um grupo de DJs alemães decidiu quebrar a monotonia das noites em clubes fechados e registrou na polícia uma passeata. A idéia do registro era dar um tom "político" à manifestação, pois assim contariam com os serviços de segurança e limpeza da prefeitura. Com seu slogan "pela paz, alegria e panqueca", o grupo alegava reivindicar o desarmamento, a compreensão entre os povos e a justa distribuição de alimentos no mundo. A prefeitura hesitou, mas acabou autorizando.
Numa tarde de sábado daquele mês, cerca de 150 jovens seminus se debatiam atrás de um único carro de som, que subia e descia a Ku'damm, a avenida mais chique da então Berlim Ocidental. A música era minimalista, meio futurística e, num compasso de 150 batidas por minuto, ensurdecia os passantes. Começava ali a primeira Love Parade, manifestação tecno que logo deixaria a cena underground de Berlim para fazer da Alemanha uma das maiores nações ravers do mundo.
A Love Parade se viu, a cada ano, multiplicando seu público. Em 1990, foram 2.000; em 1991, 6.000; em 1995, 250.000; no ano passado, quase 700.000 ravers compareceram à maior manifestação jovem registrada na história da República Federal da Alemanha. Calcula-se que o país tenha cerca de três milhões de adeptos da cultura tecno.
O movimento é tido como um produto da reunificação da Alemanha. Apelidados pela revista "Der Spiegel" de "filhos da reunificação", os ravers não fazem distinção entre alemães-orientais e ocidentais, divisão ainda marcante na sociedade alemã.
Logo depois da queda do Muro, ravers alemães-orientais e ocidentais se descobriram nos tecnoclubes que pipocaram nos dois lados da antiga cidade dividida. Não só DJs alemães-ocidentais fizeram "carreira", mas também alemães orientais. Também enriqueceram os criadores da Love Parade, que agora contam com produtoras de eventos, como a Planetcom, de Berlim, para organizar a manifestação. Milhares de pessoas estão envolvidas nesse trabalho.
A Love Parade tornou-se uma marca registrada. Fatura com patrocinadores (em 96, foram MTV e Camel, entre outros) e a comercialização de discos, camisetas etc. Na esteira da manifestação, acontecem dezenas de festas. Elas são realizadas nos cerca de 90 tecnoclubes de Berlim. Entre eles está o E-Werk, um antigo parque industrial localizado no centro da cidade e hoje uma das mais importantes casas de eventos tecno da Europa.
Para desfilar na Love Parade, os grupos interessados passam por uma seleção. Eles devem mostrar que "entendem" o sentido da manifestação, um certo profissionalismo e ser atraentes. Também precisam pagar a taxa de cerca de 3.000 marcos para sair com seus carros de som.
Entre as instituições que já participaram da Love Parade estão o Greenpeace, a ala jovem da conservadora União Democrática Cristã -partido do chanceler federal Helmut Kohl- e a Igreja. O objetivo é conquistar os ravers. As igrejas alemãs, por exemplo, deflagraram no ano passado o movimento Cruzadas, com a proposta de trazer a cultura tecno para as suas atividades. Berlim e Hamburgo foram palco das primeiras missas em que DJs produziam música tecno com conteúdo religioso.
Desde que surgiu, a Love Parade dá o que falar. Nos primeiros anos, autoridades, políticos e imprensa questionavam a seriedade da passeata. Agora, a discussão tomou outros rumos, já que não pegaria bem proibir um evento, com o qual, em 96, Berlim arrecadou cerca de 100 milhões de marcos.
A imprensa sensacionalista de Berlim pega-se em questões práticas para criticar os jovens tecno. Sempre causam alvoroço, por exemplo, o lixo e os estragos deixados pelos ravers depois de uma Love Parade. Em 96, a manifestação produziu 150 toneladas de lixo. Tudo indica que, neste ano, a festa (prevista para o dia 12 de julho) será ainda maior.
O sentido da manifestação é tema de análises na imprensa. Enquanto o jornal conservador "Frankfurter Allgemeine Zeitung" chama os ravers de "lixo da civilização", a revista "Der Spiegel" vê neles uma espécie de "vanguarda de uma geração".
"Temos objetivos políticos concretos. Não somos contra nada, mas a favor. Ser a favor e usufruir a liberdade de manifestação neste país é o revolucionário na nossa manifestação", diz o DJ Matthias Roeingh, um dos criadores da Love Parade. Ele recebeu dos ravers o título de "doutor" e hoje é conhecido apenas como "dr. Motte".
"Temos uma postura diferente daquela da geração de 68", afirma o jornalista Peter Lützenkirchen, da organização da Love Parade, numa alusão ao movimento estudantil que abalou a Europa na década de 60. "Agora, usufruímos a cultura liberal que rege o país."

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