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São Paulo, domingo, 06 de julho de 2003

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Ganhador do Nobel de Literatura de 1985, Claude Simon faz, em "Um Bonde", um mergulho sóbrio na memória e funde o frescor do olhar infantil com a frieza lúcida inspirada pela decrepitude da velhice

A justa medida da agonia

Kathrin H . Rosenfield
especial para a Folha

Um bonde leva 15 minutos da provinciana Perpignan à praia próxima, passando por vinhas e recolhendo na beira de imensos jardins os meninos das famílias patrícias que frequentam a escola do centro. Apesar da aconchegante limitação do universo e do meio de transporte, a força impessoal do tempo parece ter isolado as vidas em invisíveis espaços fechados -espaços onde já penetraram (e se alastram) os signos da progressiva invalidez. Para além de certas analogias que situam Claude Simon (1913) na linhagem de Proust, sua narrativa despoja os inúmeros acidentes pitorescos e picantes que ritmam "Em Busca do Tempo Perdido". Simon sabe do risco que corre seu "nouveau roman" ao desafiar a convenção proustiana, secando nela qualquer nostalgia "fin-de-siècle" e a doçura consoladora das convencionais reminiscências infantis. Como a realidade material (por exemplo, a paisagem "pouco acidentada" percorrida pelo bonde), também a narrativa renuncia à tentação dramática. Nada enaltece, nada sobrecarrega emocionalmente os diminutos acidentes da vida do protagonista. A narração avança como um bonde, as frases encastelando, com zelo meticuloso, percepções e idéias que coordenam ou desordenam o universo limitado. Às vezes sem pontuação, a sintaxe expressa diretamente o atropelo de sensações e pensamentos concomitantes que se atravessam em linhas oblíquas. Progressivamente, uma sobriedade imparcial, se não glacial, reduz a um mínimo a aura psicológica e o relevo emocional que poderiam conferir uma ilusória elevação à vida.

Relato frio
Gradativamente começa a insinuar-se a sorrateira analogia entre o bonde da infância e a cama de hospital da velhice. Assim, a memória à la Claude Simon reduz as reminiscências sobrevalorizadas e sentimentais a suas proporções relativas, iluminando os detalhes desgraciosos, desajeitados e grotescos de figuras (o condutor do bonde ou a mãe) outrora admiradas ou temidas como "reis" ou "deuses" da infância. A narração funde, paradoxalmente, o frescor do olhar infantil com a frieza lúcida inspirada pela decrepitude do velho, cujo corpo jaz, imóvel, obnubilado e isolado pela febre, na cama móvel.
Assim, minguam a proporções ínfimas os afetos que normalmente atribuímos aos locais e aos laços familiares e sociais. A mãe moribunda é apresentada no "jardim, onde, cada tarde, instalava-se a espreguiçadeira, [...], onde jazia não mamãe, mas uma espécie de múmia com cabeça de gavião [...], cujo olhar endurecido pelo sofrimento tinha algo de quase mau [...]" (1). É fascinante o relato frio, quase indiferente, que o velho agonizante pode fazer do terror exercido pela "assustadora e feroz adoração materna que a fazia dramatizar teatralmente a menor nota ruim ou a menor punição anotada no caderno que eu lhe mostrava".
Não se trata, porém, de uma indiferença como defeito psicológico, mas do distanciamento de certos estados outros (aqui o transe febril) que dão a justa medida das coisas. É esse estado outro que transmite certa grandiosidade até mesmo ao abominável vai-e-vem da agonia, com seus trajetos entre estações e quartos, corredores e salas de exames que são como que repetições metafóricas dos trajetos e estações da vida infantil.
Nenhuma queixa, nenhum consolo que aliviasse a dureza desta rememoração, mas tampouco nenhum fantasma de pesadelo kafkiano a dramatizá-la na esperança de alguma elaboração. O impacto dessa escritura vem do vento gélido que sopra na soleira da morte: no limiar onde não há mais nenhuma esperança, a não ser a da mais límpida verdade, sem falsas promessas e sem ilusões. De quem vê assim a infância e os vínculos familiares não se espera uma visão esperançosa das relações pessoais e sociais. O narrador observa com asco os movimentos lentos de seu companheiro de quarto, cujo nariz de falcão evoca surdamente o rosto da mãe moribunda. Uma hostilidade análoga -sorrateira e muda- reinava também entre os patrícios dos jardins e a multidão que se acotovela na "praia mundana" de Perpignan.
Claude Simon capta esta indiferença reativa na piedade condescendente (herdeira burguesa da aristocrática meiguice de certas figuras proustianas) com que os patrícios se referem aos afogados do populacho, "um pouco como se falassem de cãezinhos". Mas a empregada Tereza (cuja dedicação meticulosa pela doente, pela casa e pelo menino inclui o hábito de queimar vivos os ratos capturados e de matar gatinhos jogando-os contra a parede) destaca-se (como as amas e servas de Homero) enquanto figura de uma Necessidade alheia, que nos devolve o sentido do destino.
O olhar moribundo acompanha, sem julgamento moral, sem preconceito nem conceito, o avanço da insignificância, da indiferença, do irrisório. Implodem as pitorescas evocações que, em Proust, nos faziam respirar o "charme da burguesia", a belle époque com seus gostos ecléticos. As mansões classicistas, rococós ou góticas, orientais ou normandas de Perpignan são todas pastiches dos padrões imponentes que ainda reinavam no universo de Proust.
Evitando o pastiche -tanto o da nostalgia proustiana como o dos pesadelos fantasmagóricos de Kafka-, o bonde chamado vida de Claude Simon abre uma visão simultaneamente terrível e maravilhosa da memória. É essa economia quase clássica -comparável tão-somente ao pessimismo comedido e brilhante dos coros de Sófocles- que dá um clima paradoxal, monstruoso e justo, às reminiscências. A avó de "Feliz Aniversário", de Clarice Lispector, não fosse ela reduzida à ira da mudez, poderia ser a irmã desse narrador. Ambos parecem ter chegado ao ponto em que todo patos se esgotou: nesse momento extremo, a mão surpreendentemente firme da velhice não teme mais cortar a carne viva das ilusões.

Nota
1. Traduzimos diretamente do original. Na tradução brasileira se lê: no "jardim, onde, a cada tarde, instalávamos a cadeira longa, de ler, onde se deitava não mamãe mas essa espécie de múmia com cabeça de falcão, [...], cujo olhar endurecido pelo sofrimento tinha algo de quase mau (...)". As formas verbais "instalávamos" e "se deitava" perdem o tom impessoal e frio do original, que nivela todos os objetos, inclusive a mãe, que ocupa o lugar angustiante e ambíguo do cadáver vivo.


Kathrin H. Rosenfield é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de "Antígona -De Sófocles a Hölderlin" (ed. L&PM).


O Bonde
94 págs., R$ 20,00 de Claude Simon. Tradução de Juremir Machado da Silva. Ed. Sulina (av. Oswaldo Aranha, 440, conjunto 101, CEP 90035-190, Porto Alegre, RS, tel. 0/xx/51/3311-4082).


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