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Ganhador do Nobel de Literatura de 1985, Claude Simon faz, em "Um Bonde", um mergulho sóbrio na memória e funde o frescor do olhar infantil com a frieza lúcida inspirada pela decrepitude da velhice
A justa medida da agonia
Kathrin H . Rosenfield
especial para a Folha
Um bonde leva 15 minutos da
provinciana Perpignan à praia
próxima, passando por vinhas
e recolhendo na beira de imensos jardins os meninos das famílias patrícias que frequentam a escola do centro.
Apesar da aconchegante limitação do
universo e do meio de transporte, a força
impessoal do tempo parece ter isolado as
vidas em invisíveis espaços fechados
-espaços onde já penetraram (e se alastram) os signos da progressiva invalidez.
Para além de certas analogias que situam Claude Simon (1913) na linhagem
de Proust, sua narrativa despoja os inúmeros acidentes pitorescos e picantes
que ritmam "Em Busca do Tempo Perdido". Simon sabe do risco que corre seu
"nouveau roman" ao desafiar a convenção proustiana, secando nela qualquer
nostalgia "fin-de-siècle" e a doçura consoladora das convencionais reminiscências infantis.
Como a realidade material (por exemplo, a paisagem "pouco acidentada" percorrida pelo bonde), também a narrativa
renuncia à tentação dramática. Nada
enaltece, nada sobrecarrega emocionalmente os diminutos acidentes da vida do
protagonista. A narração avança como
um bonde, as frases encastelando, com
zelo meticuloso, percepções e idéias que
coordenam ou desordenam o universo
limitado. Às vezes sem pontuação, a sintaxe expressa diretamente o atropelo de
sensações e pensamentos concomitantes
que se atravessam em linhas oblíquas.
Progressivamente, uma sobriedade
imparcial, se não glacial, reduz a um mínimo a aura psicológica e o relevo emocional que poderiam conferir uma ilusória elevação à vida.
Relato frio
Gradativamente começa
a insinuar-se a sorrateira analogia entre
o bonde da infância e a cama de hospital
da velhice. Assim, a memória à la Claude
Simon reduz as reminiscências sobrevalorizadas e sentimentais a suas proporções relativas, iluminando os detalhes
desgraciosos, desajeitados e grotescos de
figuras (o condutor do bonde ou a mãe)
outrora admiradas ou temidas como
"reis" ou "deuses" da infância. A narração funde, paradoxalmente, o frescor do
olhar infantil com a frieza lúcida inspirada pela decrepitude do velho, cujo corpo
jaz, imóvel, obnubilado e isolado pela febre, na cama móvel.
Assim, minguam a proporções ínfimas
os afetos que normalmente atribuímos
aos locais e aos laços familiares e sociais.
A mãe moribunda é apresentada no "jardim, onde, cada tarde, instalava-se a espreguiçadeira, [...], onde jazia não mamãe, mas uma espécie de múmia com
cabeça de gavião [...], cujo olhar endurecido pelo sofrimento tinha algo de quase
mau [...]" (1). É fascinante o relato frio,
quase indiferente, que o velho agonizante pode fazer do terror exercido pela "assustadora e feroz adoração materna que
a fazia dramatizar teatralmente a menor
nota ruim ou a menor punição anotada
no caderno que eu lhe mostrava".
Não se trata, porém, de uma indiferença como defeito psicológico, mas do distanciamento de certos estados outros
(aqui o transe febril) que dão a justa medida das coisas. É esse estado outro que
transmite certa grandiosidade até mesmo ao abominável vai-e-vem da agonia,
com seus trajetos entre estações e quartos, corredores e salas de exames que são
como que repetições metafóricas dos
trajetos e estações da vida infantil.
Nenhuma queixa, nenhum consolo
que aliviasse a dureza desta rememoração, mas tampouco nenhum fantasma
de pesadelo kafkiano a dramatizá-la na
esperança de alguma elaboração. O impacto dessa escritura vem do vento gélido que sopra na soleira da morte: no limiar onde não há mais nenhuma esperança, a não ser a da mais límpida verdade, sem falsas promessas e sem ilusões.
De quem vê assim a infância e os vínculos familiares não se espera uma visão esperançosa das relações pessoais e sociais.
O narrador observa com asco os movimentos lentos de seu companheiro de
quarto, cujo nariz de falcão evoca surdamente o rosto da mãe moribunda. Uma
hostilidade análoga -sorrateira e muda- reinava também entre os patrícios
dos jardins e a multidão que se acotovela
na "praia mundana" de Perpignan.
Claude Simon capta esta indiferença
reativa na piedade condescendente (herdeira burguesa da aristocrática meiguice
de certas figuras proustianas) com que
os patrícios se referem aos afogados do
populacho, "um pouco como se falassem
de cãezinhos". Mas a empregada Tereza
(cuja dedicação meticulosa pela doente,
pela casa e pelo menino inclui o hábito
de queimar vivos os ratos capturados e
de matar gatinhos jogando-os contra a
parede) destaca-se (como as amas e servas de Homero) enquanto figura de uma
Necessidade alheia, que nos devolve o
sentido do destino.
O olhar moribundo acompanha, sem
julgamento moral, sem preconceito nem
conceito, o avanço da insignificância, da
indiferença, do irrisório. Implodem as
pitorescas evocações que, em Proust, nos
faziam respirar o "charme da burguesia", a belle époque com seus gostos ecléticos. As mansões classicistas, rococós ou
góticas, orientais ou normandas de Perpignan são todas pastiches dos padrões
imponentes que ainda reinavam no universo de Proust.
Evitando o pastiche -tanto o da nostalgia proustiana como o dos pesadelos
fantasmagóricos de Kafka-, o bonde
chamado vida de Claude Simon abre
uma visão simultaneamente terrível e
maravilhosa da memória. É essa economia quase clássica -comparável tão-somente ao pessimismo comedido e brilhante dos coros de Sófocles- que dá
um clima paradoxal, monstruoso e justo,
às reminiscências. A avó de "Feliz Aniversário", de Clarice Lispector, não fosse
ela reduzida à ira da mudez, poderia ser a
irmã desse narrador. Ambos parecem ter
chegado ao ponto em que todo patos se
esgotou: nesse momento extremo, a mão
surpreendentemente firme da velhice
não teme mais cortar a carne viva das ilusões.
Nota
1. Traduzimos diretamente do original. Na
tradução brasileira se lê: no "jardim, onde,
a cada tarde, instalávamos a cadeira longa, de ler, onde se deitava não mamãe
mas essa espécie de múmia com cabeça
de falcão, [...], cujo olhar endurecido pelo
sofrimento tinha algo de quase mau (...)".
As formas verbais "instalávamos" e "se
deitava" perdem o tom impessoal e frio do
original, que nivela todos os objetos, inclusive a mãe, que ocupa o lugar angustiante e ambíguo do cadáver vivo.
Kathrin H. Rosenfield é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de
"Antígona -De Sófocles a Hölderlin" (ed. L&PM).
O Bonde
94 págs., R$ 20,00 de Claude Simon. Tradução de Juremir Machado
da Silva. Ed. Sulina (av. Oswaldo Aranha, 440, conjunto 101, CEP 90035-190, Porto Alegre, RS, tel. 0/xx/51/3311-4082).
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